31 de julho de 2010

  A noite estava fresca. Fresca e leve e honesta estava a noite como a maioria das noites sempre são, mas ele não é assim como a noite ou todas as noites são. Ele é um homem, um homem que corre, respira o tempo todo, senta, fode quase nunca e chora às vezes, como a maioria dos homens. Senta. Sentou na cama úmida de bermudas gastas e só. Só de bermudas e só ele. Abrira a janela do quarto há horas para ficar bem frio ali dentro, assim como era lá fora, queria que o quarto inesperadamente, sem susto mas com surpresa, se transmutasse num pedaço da noite. Se fosse mais ousado e honesto descobriria que queria que não só o quarto, mas que ele mesmo fosse um pedaço puro de noite pura. Chuvisca fora da casa e dentro do quarto também, a cama úmida de chuvisco e suor, a casa molhada de chuva e o homem de suor, a noite dentro da casa e fora da casa também, dentro do homem sem nada de noite, sem nada de nada, só pensamentos vagos mantidos na vaguidão pela concentração na chuva e o choro seco, a cama molhada de suor e chuva, não de lágrimas, será? Não seria o suor e o berro-grito-careta-indecifrável-tremedeira-urro-de-bicho-encurralado um choro torto? O raciocínio parou por aí mesmo, era um homem de perguntas não respondidas "porque assim que é bom.". 

  Roupas velhas podem ser surpreendentes, a mão velha foi no bolso velho e direto no papel velho, a cara amassada de várias horas de sono mirou o papel amassado que agora estava desamassando nos dedos velhos: "Há um lugar na minha mente e no mundo aonde eu vou às vezes, lá é frio e incrível, lá chove fino e venta muito e muito forte e é onde as coisas se corrompem.". Escrita estranha, letras difíceis, escreveu isso na infância nem-sei-quando, ah sim, foi na semana passada, e até hoje, depois de tanto tempo, pensa assim, trocando talvez a chuva fina por uma bem mais forte, com raios, inundações e tudo mais...teria envelhecido tão rápido? Estava tudo ali na mão e no mundo: a chuva, o vento, a nulidade e a corrupção das coisas. Lembrou. O papelzinho com a frasezinha esquisita era um lembrete. As coisas com esse homem são muito velozes, não consegue se manter em nada por muito tempo, e esse lembrete escrito era a tentativa de alcançar essa resignação por mais tempo, "porque resignação é igual felicidade.". O lembrete não funcionou, só meteu a mão no bolso depois de uma semana, quando voltou a se resignar, mais um lembrete ineficiente no meio de tantos. "Se há fogo, serei álcool." um dia ouviu de si mesmo para tentar aceitar as rápidas mudanças em sua vida, auto-sabotagem para aceitar a sua natureza volátil. Tudo na vida foi sempre fogo, tudo que diz respeito a ele é sempre coberto de pólvora, e com o toque de qualquer faísca minúscula as coisas queimam, fazem fumaça, tremem, incham, desabam, derramam cinzas, explodem, derretem e o cenário de repente é outro e vai se cobrindo de pólvora de novo até o próximo show. Desde sempre ele se viu assim, se queimando e fugindo de incêndios, avisando a todos para não se aproximar muito, não provocarem faíscas. Muita gente bem que tentou se aproximar devagar, sem movimentos bruscos, mas no fim sempre havia atrito e se faziam grandes explosões, "você me queimou!". Mas ele se refresca nessa noite parada, exceto pela chuva. Nada vai arder sem controle ou direção, só o coração. O coração e só. Úmido com o coração quase apagando e só. 


19 de julho de 2010

  Já levantou da cama com dor de cabeça. Duas horas de sono, 10 minutos de atraso, 10 anos de desistência ou esforço, sei lá. O dia seria péssimo porque a noite foi péssima porque o dia anterior foi péssimo e o anterior a ele também, tomou banho sem molhar a cabeça, não comeu nada, escovou os dentes e se vestiu em menos de dez minutos, assim ganharia mais dez para fazer sei-lá-o-que. Se olhou no espelho e chorou por cinco minutos, tentou chorar mais um pouco mas não conseguiu, então foi para a estação de metrô. Subiu no vagão, sempre soube que durante a vida todos passamos por mais sofrimento que qualquer outra coisa, talvez viver seja até simplesmente sofrer, mas sempre quis ser daqueles animais que quando em perigo se debatem, correm, se jogam no chão, berram, urram, choram e mordem tudo com força. Se segurou com uma mão na barra de ferro lisa e se distraiu com o cheiro sufocante de loções-pós barba, perfumes, xampuss e sabonetes, tudo misturado, tudo sufocante, e o metrô embaixo da terra...chorou uma lágrima tentando permanecer com uma expressão firme de rei chorando, a lágrima parou logo embaixo da bolsa que tinha embaixo do olho. Colocou a mão direita no bolso e apertou com força algumas moedas sebosas, queria estar se debatendo, mordendo tudo, se ferindo, mas não, era desses animais que quando feridos por muito tempo desabam nessa fúria sem direção, nesse estado de graça onde batemos mãos e pés na água tentando nos manter flutuando acima de tudo, sobre a dor, sobre o dia, sobre tudo mesmo. Estava preso com uma horda de rostos mal-dormidos, emburrados, catatônicos ou dormindo com a cabeça no vidro frio, todos enfiados numa lata de metal enterrada sob a terra, o inferno. Enfiou o par de fones nos ouvidos e aumentou o volume no máximo, apertou play e a última música tocada continuou: "Will say that was just another time, one day you will put it all behind, will say that was just another day...". Desligou e forçou mais uma lágrima pra marcar o início de qualquer coisa que dói. As mãos vermelhas apertando com força o metal escorregadio, seria só isso a sua fúria? Apertar alguma coisa na mão com força? Ele não era nem gado, nem suspiro, soltou sem querer um "eu sou a minha consequência", olhares estranhos pra ele ou pra consequência dele. É de se entender, é assustador ouvir um homem de repente falar "eu sou minha consequência", e se alguém desse ouvidos, se assustaria no próximo passo. Preso, preso no metrô, preso na escada rolante quase parada, preso no trabalho, a barriga roncando e os olhos caindo, passou o dia chorando e ninguém notou porque chorou devagar, uma lágrima solta de vez em quando, como pra se oxigenar, se chorasse tudo de uma só vez pode ser que morresse sufocado.maldita cautela... Devagar, por horas, sem sobressaltos ou respiro ou respingo ou parto, um peixinho morrendo calmo no aquário. "E nunca morro" "E nunca me solto" "E nunca me debato". Nesse momento sentiu os choros mal chorados de muito tempo apertando a garganta, seria essa a hora berrar? O rosto já estava vermelho e molhado, o choro queria vir como vômito, espírito nauseado, envenenado por anos, quanto tempo vai sobreviver? Há mesmo um fim? A represa rompe mesmo, num colapso irreparável? Seria bom. Seria ótimo, excelente. "Vou tomar um café".

Cama

  E que dizer dessa tua ânsia em me ver de verdade, em ouvir qualquer coisa séria de mim se viver em ti é tão difícil quanto eu aqui? Me sinto de galho quebrado, nauseado, manco, fim de festa que nem começou, não quero que melancolia seja crime, sou desses que ainda gostam de sentar e choramingar a noite toda e não é um corpo quente que me faz de repente não ser eu assim, mas um corpo quente devia meu fluxo, me entorta, é pedir pra alguém me socar o estômago com força. Se olhar já é difícil o suficiente, veja só o que é o olhar dos outros em mim, ele me golpeia forte nos olhos, e fez isso por muito tempo, até eu desistir e decidir olhar sempre pra baixo.

    Talvez minha dificuldade em dizer não ao amor mais físico venha até disso, desse descaramento sem vergonha de considerar digno esse tipo medíocre de atenção. Ah, se fosse fácil dizer tudo assim na lata, eu-te-amo-mais-que-a-mim-mesmo-tenha-paciência-meu-bem, mas não, os elogios são ralos e com esses maditos olhos baixos, eu tenho a impressão de estar com a pele coberta de plástico, me esquivo, esguelho, fujo sempre pelas rachaduras como um inseto pequeno.


14 de julho de 2010

    O sol baixou, os olhos fecharam e  se fechou também a porta, os corpos desceram, os cigarros apagaram e os choros e risos e qualquer fúria também. A alegria química durou muito e a melancolia menos do que deveria. As vozes e a música ainda ecoam pela casa suja e a mulher lá na janela da sala fumando o primeiro cigarro. Odeia cigarros e só fuma em fins de festa, esses fumacentos fedidos ajudam a criar todo esse clima inexplicável que se cria assim que desligam o som. Desligaram o som e foram dormir, a maioria já dormia há horas, ela sobreviveu a toda overdose e coisa louca e comprimidos e bebidinhas e tudo mais, e cadê o prêmio? Cadê a coroa? Pódio? Beijo? Não acredita que era só isso, acha que a animação festiva deve ser logo seguida por esse estado inexplicável. Achava.

13 de julho de 2010

Do Ensurdecimento Próprio- Parte 1

Um deserto vermelho e totalmente plano, sem dunas, mas grandes pedras afastadas por quilômetros, algumas gigantescas, do tamanho de prédios, e aquele vento gelado e fortíssimo e intenso, como se uma tempestade estivesse sempre chegando, e digo isso porque ela nunca chegou. Eu caminhei por dias atravessando esse vento gelado, meus pés doem e eu caminhei sem parar por muito tempo, escrevo agora embaixo de uma pedra estranha e linda, enorme. A pedra é bem vermelha e áspera como cimento, é como se uma grande quadra de cimento avermelhado estivesse afundando nessa terra seca. A propósito, tenho percebido algumas pedras como enormes construções naufragando nesse mar vermelho imenso.

Me esqueci em que dia cheguei aqui e não sei como isso aconteceu, e também não sei quantos dias se passaram, pois a iluminação natural está estranha, o pôr e o nascer do sol duram muito, são as horas mais lindas, esalar alguma pedra bem alta da altura de um pr´dio de 10 andares e assistir o sol se pondo por horas,  uma meia-lua de boca pra baixo, beijando o chão lá longe e deixando tudo num ferrugem ainda mais intenso. Tenho na mochila duas carteiras de cigarros, a caneta com a qual escrevo agora, meu caderno, livros, dinheiro, um isqueiro e outras insignificâncias, escrevo isso para ter certeza que estes objetos não sumirão nem outros aparecerão aqui, ou esse lugar é estranhíssimo ou eu estou enlouquecendo. Tenho vivido essas horas(dias) num constante estado de fúria, estou cheio de adrenalina esse tempo todo e tive diversas epifanias, lembro vagamente de ter até comido umas três pedrinhas minúsculas, e pela minha memória elas tem um gosto meio ferruginoso, como sangue. Passei algumas horas correndo tentando fazer uma linha reta até chegar aqui, no percurso eu horei muito e pulei e gritei e chutei o chão e tive algumas epifanias fantásticas e outras estúpidas que só foram fantásticas no momento. Ainda não dormi e nem quero, o vento é forte e quando passa pelas rochas faz diferentes sons que dependem de onde eu estou, assobios, sussurrros, escarros e cães arranhando a porta.

Quando acendo um cigarro me sinto fantástico, sou um homem comendo fogo, comendo fogo! Quando ando e corro ou faço qualquer coisa sou um homem fantástico, em breve estarei louco, por isso comecei a escrever, talvez isso me sirva de ponto de referência para o tempo e para o que se passa comigo. Este lugar se parece mais com um sonho, lembro que sempre que pensava em amizade, me imaginava num deserto frio e acompanhado de pessoas. Talvez eu esteja em algum tipo de sonho longo e espiritual, estou sozinho e não me sinto sozinho e não sinto nada errado em nada. Há certa sincronia em tudo isso, às vezes o vento é enfrentado por esses grandes pássaros pretos de canto estranho que andam em pequenos grupos, e é tudo muito bonito e simples e surreal. Paro por enquanto aqui pois a noite é curtíssima e é difícil adormecer com o sol cozinhando a cabeça. (28/07/2009)

Poluição

  E se eu te dissesse que eu sou só isso aqui? Que sou só esse desleixo, preguiça, desistência e perdição? Se eu dissesse isso assim, com tudo, sem gaguejar, sem pestanejar nem um por um minuto, você ainda se atreveria a dizer que gosta de mim? Eu tenho esse vício no que é grande, novo, triste demais, alto demais, fundo demais, vergonhoso demais, forte demais, muito perigoso, busco essa força óbvia porque não a tenho em mim. Tantos amores me foram oferecidos com coragem, mulheres incríveis, homens fantásticos, e nós apertados na garganta, e nãos e em seguida soluços. Sou o homem mais corajoso que eu conheço, vou cavando em mim para encontrar qualquer coisa, qualquer preciosidade minúscula, não encontrei nada, como posso ser assim tão vazio? No fim sou eu só pele mesmo? Como eu queria olhar pra todos vocês e amar vocês com a força que eu amo quem eu não conheço, mas não tenho toda essa simplicidade. Como eu tive sorte, como quiseram ser amados por mim as pessoas mais fantásticas, puro diamante, mas por respeito eu digo não e engulo isso tudo quando queria mesmo é me engolir, me digerir, dissolver em mim, mas vivo assim, com feridas abertas só pra ver de que porcaria eu sou feito. Cada dia um choro diferente, um amor instantâneo, um recomeço, nunca renasço em nada, sou assim, inicial. Talvez eu tenha nascido cedo demais e não consigo sair do começo de tudo, e me sinto mal em viver me desculpando por essa inferioridade óbvia, como eu queria ser maior ou esconder essa desgraça toda com uma máscara. Nunca consegui responder amor à altura porque pergunto "você me ama, mas você ama a quem?" ou se passo por cima disso tropeço ali adiante me perguntando "você ama ela, mas quem ama ela?", num primeiro momento é patético, mas não quero arrancar nada disso de mim, nem a perdição, nem a incoerência, nem a gagueira nem os olhos feios, não são doenças ou bichos-de-pé, quero abraçar a mim e lamber minhas feridas com orgulho, assim como (teoricamente) faço com os outros, ou talvez (e é o mais provável) eu seja mesmo "neutro e vazio", "louco", "sem conserto", "covarde" e tudo isso que ouvi diversas vezes de alguns que estimo e que outros tenta(ra)m me convencer que não são verdades. Como eu tento, e talvez nem deus saiba o quanto me dói o fazer, fazer essas coisinhas medíocres, miúdas, estúpidas e mentirosas que eu faço. A questão principal é que eu não tenho mais questão principal, tentei me procurar em mim, tentei tratar o mundo com simplicidade, tentei uma vida de experimentações, tentei autodestruição, tentei ligar o foda-se e tentei ser incrível e agora, pela quatrilhonésima vez essa coragem que eu nem sequer sei se eu tenho vai se afogar junto comigo até daqui a duas horas ou dois dias ou um mês, até uma palavra ou uma noite de amores mal-resolvidos ou uma notícia boa ou um recado de um amigo nos puxar de volta, limpos. Às vezes eu acho que isso que chamam de loucura ou desamor ou manha seja só a minha parte de dentro que é pra fora, talvez eu tenha rompido e vazei pra tudo, até que eu secasse e dentro não sobrasse nada além de espaço vago, isso explicaria perfeitamente esse papo que eu tenho repetido de ser fantástico e patético ao mesmo tempo. Ou talvez eu sou todo virado pra dentro, e a dor e o amor e tudo mais que eu não sei nomear se misturou e formou isso aqui, talvez eu não saiba vazar em nada e por isso sou assim tão repetitivo. Não faço idéia se é hora de pedir desculpas de novo, só isso que aprendi a fazer até aqui, não tem justificativa nem conserto nem promessa pra nada, é só um "Me desculpa por ser assim?".

10 de julho de 2010

Jogou as cartas no chão, expulsou os amigos de casa, tirou o cigarro da mão e largou o copo na mesa. Porque causar tanta dor repentina, tanto sofrimento inesperado, fazer todos levarem um tapa sem aviso prévio? Porque ele precisava disso, qualquer bicho grande quando se afoga por muito tempo fica parado afundando, e de repente, pra surpresa de tudo, uma pata se mexendo, um pé empurrando a água. O bicho não se salva, mas esses movimentos antes de morrer são de uma grande profundidade. Estaria o homem assim, esperando a morte? Seria toda essa rebeldia instantânea só uma pata se mexendo? Chorou na casa agora vazia e sem música. "Eu não estou morrendo!" gritou triste pro vento, "só estou um pouco cansado, amanhã vou estar bem de novo", essa segunda frase dita só para concluir o raciocínio verbal e não ficar aquela coisa incompleta, não queria parecer louco pra si mesmo. Dormiu no chão da sala para que a fúria ficasse mais óbvia, no outro dia estaria tudo bem, se desculparia com todos e os convidaria para visitá-lo, encheria os copos, limparia os cinzeiros e voltaria a afundar.

9 de julho de 2010

   É isso. É muito difícil pra mim dizer "é isso", confirmar, dizer qualquer coisa com essa certeza. Eu sempre fui esse desacerto. A felicidade pra mim vem a qualquer momento, em qualquer mínima coisa, assim como a infelicidade total, que vem de qualquer coisa, às vezes um olhar torto de repente me entorta. Não estou muito bem, estou velho e perdido, e passo a vida pedindo aos outros paciência. Minha paciência comigo mesmo se esgotou, cansei de trazer desgraça pra quem eu toco, por deus, preciso tomar um pouco de fôlego, estou correndo sem parar e vou acabar morrendo por isso. Num surto de felicidade ou infelicidade (não sei qual dos dois foi, passou tão rápido quanto veio) decidi que vou abrir um pouco de espaço nessa maçaroca esquisita que está a minha vida e colocar lá um pouco de calma e de paciência comigo mesmo. Talvez eu me envenene um pouco com algum remédio, talvez eu tente dormir muito mais, talvez me dedique a amar alguém, talvez eu me apóie nos meus amores, talvez eu afunde na literatura, não sei, mas eu preciso mesmo parar de cair, parar de correr, dormir ou me afogar, o que for mais artístico. Comecei por escrever isso aqui, tentando não me sentir culpado por escrever tanto egoísmo e tantos eus. Vou ser um pouco mais bonzinho e tolerante comigo mesmo, primeiro por essa noite, com calma, tocando em tudo com cuidado, vai ser como andar no escuro por um cômodo desconhecido. Sei que vou quebrar a cara assim que o sol nascer, sei que vou me culpar depois por ter falhado comigo mesmo de propósito, mas faço isso sempre, só pra me provar que eu tenho muita muita muita muita coragem, e que ainda não estou velho. Valendo!
   Às vezes é preciso se sentir pequeno para se sentir importante, não que estar diante algo enorme nos dê esperança de sermos maiores, mas quando estamos diante de algo lindo, essa coisa exala algum odor incrível que entra pelas nossas narinas e afoga o cérebro num líquido adocicado. "E enquanto dura, a vida é bela.", para me tirar a responsabilidade de usar palavras minhas. Quando tocamos qualquer coisa incrível sentimos que cada coisa no universo tem o seu lugar, cada pedra está lá para completar a perfeição das coisas desregradas. Ninguém teve que fazer qualquer lei dizendo que "é proibida a permanência de pedras na coluna oceânica", mas cada pedra afunda para manter esse...Equilíbrio? Perfeição? Não sei, não sou como uma pedra. Na verdade sou sim, sou uma pedra jogada na correnteza esperando pousar tranquila no leito do rio. Isso não deveria demorar tanto, eu espero há muito tempo, e me atreveria dizer que isso pode ser algum tipo de pequena liberdade, mas tenho certeza que não sou mais livre que nada. Talvez eu não seja assim, encantador e livre como uma pedra ou árvore ou pessoa ou tempestade, talvez por isso eu ame tanto essas coisas, sou um invejoso.
   "Eu tenho olhos loucos". É o que eu noto nas poucas vezes em que me aventuro por espelhos. Meus olhos tem um brilho discreto e insano, cara de mau humor com cara de susto.
   Pessoas de olhos grandes são lindas, quando eu estou bem o suficiente para me embriagar do intervalo entre o que eu sou e o que eu quero ser, me vem à cabeça, separadaemnte de todo o resto, que eu gostaria de ter grandes olhos.
   Voltando aos olhos loucos: Algumas pessoas dizem que eu tenho um rosto expressivo, que faço caretas e diferentes expressões mesmo quando estou parado e silêncio. Isso é consequência de uma vida interna turbulenta. A vida é assim, qualquer um pode ser uma pessoa fabulosa, ah, se eu pudesse olhar tudo por dentro, dissecar, cortar e colocar em microscópios eletrônicos...
   É daí que vem a minha esperança, eu posso ser uma pessoa incrível, apesar de tudo, apesar de ser feio, burro, mentiroso, hipócrita, infantil e de ter olhos loucos. Um dia eu vou me olhar no espelho sem medo, vou conversar olhando profundamente nos olhos de alguém, levantar o queixo, abrir o coração e fazer minha cabeça explodir sem-vergonhamente.
   Esse dia não vai chegar, mas viver é duvidar e quebrar a cara.

8 de julho de 2010

Ela sempre foi uma menina muito esquecida, e quando cresceu ficou muito difícil viver numa cidade. Datas filas, senhas, números, contas, regras, ela quase enlouquecia com tudo isso, se entristecia porque achava que ela não foi feita para o mundo. Ela era mais simples, mais natural, queria não ter de lembrar de nada, só assim um novo dia seria realmente novo.O corpo escolhendo o que ficar na memória, sem esforço sem papeizinhos colados em todos os lugares, honestidade biológica. 

Sua casa era repleta de papéis colados em tudo, na geladeira, no monitor, perto da TV, no criado-mudo, na bolsa, no armário e no espelho do banheiro. Pagar, ir, comparecer, telefonar, receber, quando estaria livre de tudo isso? E como se essa loucura toda não bastasse, ela ainda copiava mantras, orações e bruxarias, e colava em tudo quanto é lugar, também. Talvez para não esquecê-la de tentar ser feliz e talvez comprar uma casa no campo, longe de tudo isso. Algumas pessoas são assim, perdidas.

Estrogênio e como Sobreviver a Ele sem Maiores Danos

   Mulher é um bichinho que vive em uma concha, mas não uma concha dessas comuns, a concha das mulheres não abre nem com à marretadas, e nada entra ou sai dela(!). Há relatos (algum deles com registros fotográficos e até científicos) de homens que viram uma concha de mulher aberta e se enganaram achando que veriam uma mulher de verdade lá dentro, o que viram foi outra concha, um pouco menor que a primeira, como uma matrioshka, e essa é outra característica das conchas femininas que as tornam mais valiosas no mercado social e familiar (pra não dizer amoroso).
 
   Deve ser por isso que as mulheres se sentem felizes ao lado dos homens. deve ser interessante estar em contato com criaturas tão superficiais, imagina só, coisas tão profundas tanto pra dentro quanto pra fora, de repente se vêem do lado de bichos tão simples. E olha só, eles não têm peitos! . Nós, essas coisas transparentes e sem nada do outro lado, um suspiro de simplicidade, sem nada a esconder. E mesmo que quiséssemos esconder alguma coisa, seria impossível, pois as mulheres podem enxergar quase qualquer coisa, tanto pra longe quanto pra dentro, do gigante ao nanoscópico.
Eu imagino que nem uma mulher sabe ao certo como ela é de verdade, assim, puramente, mas se nós formos analisar (a metáfora) a fundo, elas devem ser algum tipo esquisito de pérola maravilhosa que fala e se mexe, e que tem audácia e coragem suficientes para se esconder numa concha eterna, só para se manterem intactas, inteiras, invioláveis, e por consequência, irresistíveis.

Da Arte de Começar e da Habilidade de Continuar um Começo

   As coisas funcionam mais ou menos assim: Você decide fazer alguma coisa, normal, simples. então vem aquela primeira coragem, que vem junto com a vontade. Em seguida vem a segunda, que é mais lenta e vem com alguma ação que te deixe satisfeito. Auto-sabotagem pura. A terceira eu não sei ainda. Acabei de chegar na segunda.

Consulta

(O homem entra na sala, acanhado e assustado)HOMEM: Bom dia.
PSICÓLOGO: Boa tarde, já são uma e meia.

HOMEM: Boa tarde, se isso faz diferença na minha chegada.

PSICÓLOGO: Se sente, por gentileza. Então...O que te traz aqui?

HOMEM: Na verdade era para o meu irmão estar aqui, após um terrível acidente de carro ele adquiriu o hábito igualmente terrível de comer brinquedos infantis.

PSICÓLOGO: Ah, sei quem é esse paciente. Atropelou uma vaca. O que o Senhor faz no lugar dele?

HOMEM: Ele não pôde vir, estava roubando brinquedos numa creche, deve demorar bastante.

PSICÓLOGO: Tudo bem, o senhor parece transtornado. Qual o seu problema?

HOMEM: São os espelhos, doutor. Tenho certeza que o homem que eu vejo no espelho não sou eu.

PSICÓLOGO: Como assim?

HOMEM: É isso mesmo, parece loucura, eu sei, por isso vim aqui. Toda vez que olho no espelho aquele homem está lá, olhando curioso e com medo pra mim. Isso, além de me constranger, é assustador, e ele se assusta quando eu me assusto, isso me assusta ainda mais, o que assusta ele mais ainda.

PSICÓLOGO: Entendo... Não seria porque aquele homem é o seu reflexo?

HOMEM: Deveria ser, eu sei. Mas ele não sou eu, ele é sólido demais, vazio demais...Tenho certeza que eu não sou assim, eu sou mais líquido, mais aderente, sei lá.

PSICÓLOGO: Líquido?

HOMEM: É uma metáfora.

PSICÓLOGO: Mas o quão líquido? Que nem água mesmo ou mais pastoso? Na textura de gel de cabelo, talvez.

HOMEM: Não tenho certeza, talvez entre a pasta de dente e o sorvete.

PSICÓLOGO (anotando): Sorvete...Tudo bem, e ele não é assim líquido? Me acho idiota ficarmos falando de liquidez.

HOMEM: Eu já disse que é só modo de falar. Eu sou mais espiritual, mais poético, algo assim. E liquidez é um conceito econômico, não estou tão mal assim.

PSICÓLOGO: Tudo bem, continue falando.

HOMEM: Eu não estou aqui pra te distrair.

PSICÓLOGO: Continue falando da sua relação com o homem do espelho.

HOMEM: Tudo bem. Eu sou uma pessoa, ele é só um monte de carne seca, talvez nem isso. Ele é o reflexo de carne seca, não tem nem DNA! Se aquele homem é o que as pessoas vêem quando olham pra mim, agora eu entendo porque eu não consegui comer minha secretária. Aquele homem no espelho não tem recheio, não tem inteligência, é só um animal, eu não sou assim, tenho certeza.

PSICÓLOGO: Você deve ter algum tipo de esquizofrenia ou transtorno de personalidade.

HOMEM: Isso não é tudo, tem a pior parte.

PSICÓLOGO: Que parte?

HOMEM: Eu acho que ele tomou meu lugar. Acho que ele me devorou enquanto eu dormia e agora eu vivo no estômago ou nos intestinos dele. E ele anda e fala e vive e faz tudo enquanto eu fico aqui dentro, é terrível a umidade de um intestino. Ele deve ser algum tipo de alien ou demônio que possui pessoas interessantes, porque eu sou interessante, tenho certeza. Ele é feio, chato e diz bobagens o tempo todo, e fica me encarando quando olho no espelho. Porra! Eu não fiz nada pra ele me encarar com tanta crueldade.

PSICÓLOGO: O tempo acabou.

HOMEM: Que tempo? Eu vou morrer, doutor?

PSICÓLOGO: A consulta, ela acabou. Tenho que ouvir outro louco, me desculpe.

HOMEM: Mas ela não deveria durar uma hora?

PSICÓLOGO: Você chegou 45 minutos atrasado. Vou lhe receitar uma caixa de Cloridrato hexadestilado de coentro, um comprimido a cada vez que você for se olhar no espelho. Não tome quando não for se olhar no espelho, as consequências podem ser desastrosas. Ninguém sabe o que acontece porque todos têm medo do que pode acontecer.

HOMEM: Tudo bem, obrigado.

7 de julho de 2010

E é assim que tudo começa e termina, as cortinas fechadas e o ator em pé tremendo no palco. E é assim que eu me faço ridículo, rindo e dizendo "oi" e fazendo sexo e chorando entre tudo isso, às vezes eu me vou e logo volto terrível me humilhando pelas migalhinhas das tuas palavras,me dizendo que eu sou um homem espetacular. Te fode, idiota, me faça rir. E que por sorriso entenda-se aquela expressão terrível e deformada e insana que todo mundo faz quando está felicíssimo. E é assim que tudo começa e termina, eu no colo do mundo molhando tudo e sangrando e doendo e tentando fazer amor com tudo. Por Deus, desista, resto de nada, braço de ninguém, pegada invisível sobre todas as coisas. Enfia o seu amor amputado no seu rabo, mendigo.

A cauda

E depois de tudo, quer dizer, de nada, ainda me atrevo a vir aqui cuspir minha existência e deixar essa marca cancerosa. Mas é assim que eu aconteço, tenho essa vontade intransponível (é assim mesmo, eu sou desses que são um obstáculo para si mesmos) de deixar alguma coisa, um vestígio, dizer que "eu passei ali e que senti aquilo" nem que isso cause desgraça a alguém. Se chama egoísmo.

E é claro que eu deixei o conforto quente da insignificância deliberada para a coragem de causar dor aos outros sem querer querendo e então agora sou o mascote, aquele bicho esquisito torto que acompanha todos os personagens principais, os atores, eu sou quase platéia, quase parte do cenário. Que fique claro que essa transição foi quase imperceptível, e que se eu tivesse percebido que começaria a causar dor aos outros e logo depois a ser um peso -membro morto pendurado- carregado por elas eu preferia ter ido embora de todos os lugares.

Mas o problema agora é como regredir, como voltar, sou criança que perdeu a pureza? Era pra ser assim e pronto? Ponto? Eu não devia estar aqui, e tenho a impressão que eu não deveria estar em lugar nenhum. Só sei que quando se vive com gigantes você acaba sendo pisoteado, vou para o mundo ter certeza que lugar nenhum é o meu lugar. Estou saturado. Cansado? Pisoteado? Humilhado? Estou humilhado, é isso. Bobo idiota humilhado e apedrejado pelas pessoas no meio da praça sem que elas percebam. Sem que elas nem ao menos percebam, meu deus, e é tudo culpa minha. Eu não pedi pra vir pra cá, era pra eu estar muito longe a essa hora, mas me arrastaram, eu devo ter uma lente gigante sobre a minha cabeça, as pessoas me vêem maior, criança pequena no puteiro.

Agora é ter paciência, minha vida é isso, caminhar me dizendo "dê só mais um passo, você consegue", e quando dou o passo, cambaleio e me digo isso de novo, talvez eu já tenha caído e nem sequer percebi. Agora é ter paciência comigo mesmo e caminhar nas pegadas dos outros, ser cauda, a sombra e o vazamento, e olhar o queixo e a paisagem enquanto converso e engolir o choro numa careta instantânea. Se eu pudesse dar mais espaço à essa careta ela gritaria "Não me olhe assim grande, seu burro!", talvez não com essas palavras, talvez mais rude e sincera e clara, e linda. Agora é ter paciência comigo.

4 de julho de 2010

(Sem título)

Era dessas mulheres na meia-idade e tinha aquelas rugas começando a rachar seu rosto, gordura velha se acumulando nos quadris, pele amolecendo em todo corpo. Ela era uma mulher lindíssima. Foi sem aviso prévio, essas coisas extremamente lentas costumam acontecer assim de repente, bum!

Havia uma samambaia velhíssima e muito saudável na janela da sala, ela odiava plantas, mas uma amiga uma vez a ensinou algo importante sobre samambaias e proteção espiritual, ela esqueceu o que era, mas por respeito cuidava da planta sempre que se lembrava. A samambaia estava tão jovem quanto há anos atrás, e para se ferir ela cuidava da planta sempre que se lembrava.

Sua irmã a odiava e era psicóloga, há um "por isso" não assumido ali no meio. O fato é que a mulher conseguia sua felicidade pela irmã. 30 comprimidos de felicidade a cada duas semanas. Era bom enquanto durava, geralmente 3 ou 4 horas de honestidade química e de dez a doze de discrição química, ela era uma viciada. "Acordar" já não é uma coisa pra qual ela ache as arestas, aliás, há muito ela já não sentia as arestas das coisas, tudo se tornou musical demais e fumacento demais. Mais musical que fumacento, na verdade. Ela sempre foi musical demais, era dessas mulheres que aos fins de semana se sentava no chão da sala com os amigos para falar de amor e remexer poeirentos discos velhos, mas depois que começou a engolir aqueles comprimidos a música toda foi expelida para o resto do mundo e ela ficou vazia. Ela dizia assim "expelida" pela maciez com que tudo aconteceu, sempre rápido, claro, mas bem leve, a música saiu dela como quem escorrega rápido no gelo.

Teria amado? Não tinha certeza. Se isso aconteceu passou rápido demais para ela sentir, pois tinha se tornado tão veloz ao sentir que só mantinha contato real com o que fosse em essência lento. Sabe-se que ela foi amada, e ousa dizer que é muito amada por todos, pelo menos por três ou quatro horas diárias com mais clareza e de dez a doze horas mais leves, até o amor ir passando rapidíssimo e visivelmente constrangido.

"Eu quero viver com toda a velocidade" escreveu na porta da geladeira, na época em que ganhou da amiga a samambaia, era um lembrete maravilhoso. Hoje ela tenta mais uma vez apagar cada palavra, dessa vez com bombril seco. Conseguiu.

3 de julho de 2010

Perspectiva

E lá estava eu, suando no vapor quente do tédio, fazendo graça, fodendo meu tempo sentado no chão, e então olhei para você. Eu te conheço, você é minha amiga, mas me deslumbrei contigo, moça. Percebi de repente que você era mesmo física, você tem braços, costelas e barriga, talvez voê tenha até uma vida!

A verdade é que você é quase como uma ninfa, se escondendo e deslizando leve por tudo, fantasma lento atravessando paredes. Às vezes penso que se eu soprar no seu rosto ele vai se dissolver, juro. Você me deixa envergonhado, você nunca havia me deixado envergonhado até aquele dia. Porra, pra que eu fui levantar a cabeça? Talvez pra te ver. Te vi, mas te vi melhor, mais fundo e mais alto, te vi pesada e contraída, animal enorme se encolhendo no frio.

Sinto dizer, moça, mas você é ainda mais incrível agora, e como eu sou idiota em dizer isso.

Sem Cuidado

Ser assim, mais puro, mais aberto. Não viver sempre nessa atmosfera as-coisas-não-andam muito bem, e quando falo desse vício no torto não mostro que quero mais solidez, só que a minha falta de solidez seja melhor vista pelos outros e por mim.

Acordar, se alimentar, se lavar, se vestir, se doer, amarrar os cadarços e desbravar o dia. Nunca parece tão certo, mas lá vamos nós, falando, caminhando, lendo e fazendo tudo errado, cheios de paciência misericordiosa uns pelos outros, "eu entendo", "eu compreendo seu ponto de vista", "acho que percebo o que você sente", é tudo meio errado, sou torto e acho que entortei tudo.

Não era pra ser tão irritante nem tão chato nem tão cheio nem tão lento nem tão cuidadoso, mas o é. Às vezes consigo ver nos olhos de alguém certa...fúria? Exatamente, às vezes eu consigo ver por um momento uma furiazinha piscando desesperada. Então mostro também por um momento a fúria dos meus olhos, talvez por educação, talvez para nós dois celebrarmos juntos a comunhão mal-feita de todos.

2 de julho de 2010

Ha

A felicidade sempre sorri para todos, é um fato, não adianta querermos mais justiça ou humildade. Mas para mim ela só sorri assim, sarcástica, hipócrita...maligna, talvez? Não. É assim, depois de cada salto feliz há pra mim um buraco que só pode ser preenchido com coisas estúpidas feitas por mim mesmo ou algum derivado. É assim que funciona, me vou para algum lugar interessante e na volta umas lágrimas bem corridas, desespero contido de propósito. Te dou um beijo, se isso for me redimir, te dou sexo, se isso for me redimir, te dou dinheiro, carona, atenção, comida, amor, tempo, colo, água, brigadeiro de panela, misericórdia, te sacudo, se quiser, se isso tapar esse buraco. Sou corajoso, sei que eu vou me estabacar ali na frente, mas dou o salto, ponho o pé sem fraquejar.

Não vou dizer que não foi bom, não vou dizer que não me agradou, mas será que logo depois poderia ter um pouco mais de sadismo? Obrigado. Obrigado e me desculpe.

Eu faço o que você quiser se for logo depois de uma grande felicidade. Faço mesmo, te como, te beijo, te sirvo de apoio , te faço cócegas, te estapeio, te embalo e te deixo dormir. Mas que seja, por favor, depois de um grande salto. Não me quero esmurrando o mundo, me jogando no frio sem camisa, me cozinhando no chuveiro. Faço tudo por egoísmo, nunca acreditei no egoísmo, pelo contrário. Mas tenho encher esse buraco com alguma coisa minha, é fácil entender. Não vou pedir desculpas, dizem que isso não funciona mais, mas -por deus- não se ressinta.


1 de julho de 2010

Acordou de Novo

Acordou deitado na cama. Acordou? Nunca. Agora os olhos pregados no teto, desespero branco, leitoso, tristeza digestiva. Não se perguntou nada, não se questionou sobre nada, nem sequer quis olhar o relógio. Tudo muito cru ainda, ele sempre acordava assim, empapado de toda essa pureza desonesta ou dessa honestidade impura. Só se mantinha deitado na cama seca, confortável. Beijava o tempo, não tinha medo, esteve tanto tempo gritando alguma coisa que sequer percebeu quando dormiu. Teria gritado puxando os cabelos por dias? E dormido, teria feito isso por quanto tempo? Não me direi nada, vou ficar aqui mudo vagando na cama. A tristeza veio, decidir que ficaria calado já era em si certa queda, perda da capacidade de flutuar. Eu sabia que isso iria acontecer, acordei sabendo que iria cair, em breve vou começar a grunhir de novo. Olhou o relógio com pena de si, eram 03:23 de uma segunda segunda-feira perdida. Foi até a cozinha suja, bebeu água e depois engoliu um comprimido seco. Fez isso de propósito. Comprimido engolido a seco preso perto do coração. Acordou deitado no sofá, acordou caído, já impuro e desonesto. Já sem flutuar, o sol ofuscando a visão sem pena. Foi até a cozinha, comeu qualquer coisa sem gosto, Engoliu um comprimido com água e foi até o quarto arremessar o relógio pela janela. Feito isso, se deitou e dormiu de novo, imaginando se acordaria flutuando incrível de novo.

Monólogo

Trânsito parado, o rádio do carro está estragado estragado, foi ajustar o retrovisor interno e sem
querer viu o próprio rosto.

-Um dia você não vai olhar para mim com esses olhos baixos, você vai olhar direito pra mim e rir, talvez por eu ser um idiota, talvez por orgulho. Se eu pudesse eu te sacudiria e diria o quanto você é incrível. Você vê vê tudo fantástico com esses seus olhos apavorados, rapaz, menos você mesmo! Você sabe que cedo ou tarde você vai ter que virar esses olhos pra dentro e será obrigado a amar cada defeito muído. Sem vergonha, rapaz, sem fúria. Eu sei tudo sobre você, não quero te perguntar nada, sei que você gosta de golpear paredes com os punhos, isso é ridículo! Eu tenho te observado quase todos dias, só não te sigo quando você todo zumbi fica andando por aí sem ter para onde ir, deixo esse momento para você fazer o que quiser, está livre de mim toda vez que sai correndo insano por aí, mas ninguém consegue correr por muito tempo, rapaz. Você não é um maratonista existencial, um dia você vai cair e se machucar muito. Você não quer se livrar de mim, eu sou quem põe seus olhos baixos com coragem nos livros, e faço isso por mim, não por você. Eu sou quem inicia seus péssimos parágrafos, você só os completa. lembra quando costumava ser o contrário? Pois é, eu venho tomando o seu espaço, e em breve vou tomar o seu lugar. Não se amedronte, essas coisas acontecem com frequência. Independentemente do que aconteça, conserve esses olhos baixos, em breve isso vai ser só sarcasmo gestual.

Som de buzina. Xingamento. O trânsito havia tornado a andar. devolveu o retrovisor à posição normal e voltou a dirigir.

Carta

Amada Marta,

Tudo bem com você? Como está lidando com meu sumiço repentino? Espero que você esteja bem, pois sei da terrível desinteria que você tem quando fica nervosa. Bem, eu poderia ter te telefonado para me explicar, mas imaginei que dizer tudo numa carta aumentaria o efeito dramático, além disso eu esqueci meu celular em casa na pressa da fuga e não faço idéia de como se usa um orelhão. Mas isso não importa, vou parar de ficar te cercando feito uma jaguatirica e pular logo na sua jugular.

Bem, imagino o choque que deve ter sido para você eu sumir assim de repente, visto que nesses nossos 5 anos de casados a maior surpresa que eu fiz foi trocar as cortinas do quarto de azul ardósia claro para vermelho violeta claro, ficou péssimo, a propósito.

Você é linda, Marta, eu amo suas gordurinhas discretas no quadril, seus olhos pequenos e adoro ouvir você ronronando enquanto dorme. Verdade, Marta, você ronrona enquanto dorme, e eu nunca te disso antes porque não queria que você se preocupasse, achando ter algum tipo raro de tuberculose ou algo do tipo. E principalmente, porque eu só conseguia dormir depois que você começava a ronronar, e eu não queria ter insônia. Martha, acho bom você ir a um médico, isso pode ser grave. Eu te amo como quem respira.

Martha, um dia você me disse que os melhores amores são os tranquilos, os calmos, os lentos, e no mesmo dia disse que adora minha tranquilidade bovina. Eu recebi como um elogio, mas achei uma filhadaputagem você dizer isso de mim. Eu sempre quis ser o rápido, o aventureiro, o delirante, você sabe disso. Sou tranquilo porque o mundo me comprime, eu sempre acreditei na velocidade das coisas, sempre te disse que tudo tem que ser rápido (na verdade não disse, mas mostrei várias vezes, principalmente enquanto transávamos) e indolor. Correr, é isso que eu queria: Correr todos os dias para o trabalho, correr pra você, correr em você à noite.

Você é uma esposa maravilhosa, tive sorte. Mas eu queria algo mais rápido, eu não quero um forno elétrio, quero um fogão a gás, Marta! E fui procurar meu fogão à gás. Eu traí você por um ano, com a Helena, aquela magrinha que se veste feito uma puta lá no trabalho. Ela foi meu fogão a gás, nós saíamos sempre, sempre para lugares diferentes, era criativíssima na cama então nós decidimos ir embora juntos, foi quando eu saí de casa, semana passada.

Martha, estou há uma semana com ela e foi um desastre até aqui. Ela ronca, Martha! Eu imaginei que ela não ronronasse, e que por isso eu não dormiria por um tempo, mas depois me acostumaria. Mas a Helena ronca, é terrível dormir com o joelho preparado para golpeá-la nas costas. Além disso ela é feia. Aquele rosto bonito é uma máscara de pós e tintas estranhas que ela constrói todos os dias ao acordar. Mas eu queria ser um fogão a gás, esse tipo de fogão não se importa com isso, pois a alma queimando sobressai qualquer coisa. Marta, a Helena me traiu com um cabeleireiro, eu sempre achei que fossem todos gays, mas ela achou um hetero e está dando para ele, eu descobri quando vi ela estragando o cabelo de propósito. Marta, a Helena é intensa, qualquer um que ofereça uma vida mais emocionante a ela ganha seu coração e seu corpo. Acho muito bonito, mas não consigo viver nesse eterno êxtase espiritual, eu sou bovino, infelizmente.

Eu estou num motel à beira de alguma estrada desconhecida, nós não olhamos placas, queríamos ir para onde o destino nos levasse, queimamos o meu carro para ficarmos livres. Estou num lugar desconhecido e sem carro. Está péssimo.

Gostaria que você desse um jeito de vir me buscar, o nome do hotel é "La Roza del Mar", isso mesmo, "roza", com zê. Escolhemos um hotel com nome em espanhol por ser mais sensual, e "a rosa do mar" soa bonito, se nos esforçarmos conseguimos achar um ótimo signifiado existencial, você sente isso, meu bem?

Eu sei que você vai me perdoar, pois já fiz coisas do tipo algumas outras vezes, como quando decidi comprar uma kombi e viajar pelo litoral do Brasil, uma pena que a kombi tenha quebrado e que o litoral não seja assim tão bonito, foi um tédio. Tem também o dia que instalei espelhos nas paredes e no teto do nosso quarto, pra quando estivéssemos fazendo amor nos vermos por vários ângulos, eu imaginei que seria uma experiência visual(espiritual?) interessante, polidimensional, redentora. Não foi. Eu tive náuseas e você, vertigens.

Martha, quando vier, traga camisas limpas e venha sem maquiagem, como sempre. Você é linda, sempre foi. Venha rápido. Se prepare para a próxima loucura minha, venho pensando em comprarmos um barco e atravessarmos o atlântico. Deve ser interessante, deve ser único, poétio, artístico, deve ser como um forno a gás. Não sei se sairei ileso da meia-idade, mas tenho você.

Inevitavelmente velho, chato, sem graça e com uma linda mulher que ronrona enquanto dorme,

Claúdio.


PS: Como eu queimei o carro, você deve vir de ônibus, saia cedo, pois deve chegar aqui antes da diária do hotel acabar.