28 de setembro de 2015

  A chuva cai como se o céu chorasse, porque nesse momento eu choro também, e meu pequeno choro reflete o grande choro. É importante que o de-dentro esteja acompanhando de perto o de-fora, ao contrário do que nos foi passado terrivelmente no coração como uma doença: Não podes estar nu o tempo todo, inclusive estejas nu o mínimo possível. E assim fui me jogando pelos cantos da vida, com medo da nudez, todo tipo de nudez. Então nessa noite em  as gotas de chuva caíam do alto de algum lugar sagrado, algo como sementes de uma planta cujas flores possuíssem propriedades mágicas, uma dessas sementes entrou pelo meu nariz ou orelha, causando bem lá dentro um tremor orgânico que me encharcou a ponto de criar uma necessidade imensa de estar nu. Eu já conhecia a nudez, todos nós conhecemos, nascemos com tudo nu. Mas decidi que a nudez que viria seria como a nudez primordial, a pequena nudez de sangue e ossos e sono com sonhos. Além de estar nu pela primeira vez (mesmo que fosse a quadricentésima vez), houve em mim um parto, o parto da grande e única noite que desde os meus primeiros pelos crescia em mim como um feto antiquíssimo. Pus de fora corpo e coração.
  Para sofrer menos, eu passava o dia equilibrando na ponta do nariz uma vareta imaginária, que não por acaso era muitíssimo pesada, mas nessa noite a vareta caiu e por isso me desesperei, pois talvez minha cabeça caísse pra frente em súplica e remorso. Estranhamente, meu nariz continuou no lugar, apontando com orgulho para cima. Pela primeira vez nu e pela primeira vez sem a maldita vareta.
  A nudez, no entanto, ainda não estava completa, pois sentia escorrendo de minhas orelhas algo viscoso que me cobria os ombros e me sujava do peito às pernas. Pus um pouco da gosma na ponta do dedo, era quase preta. Imaginei que essa substância estivesse sendo represada dentro de mim por uma represa levíssima e invisível, da qual só tomei conhecimento quando, num estrondo silencioso, eclodiu e liberou uma quantidade imensa dessa substância pelos lados de minha cabeça, cobrindo, por acidente, minha nudez. A sensação era de que a forte corrente que eu me esforçava para que me carregasse era não só de água da chuva, mas também dessa substância preta e estranha que eu sabia que sujava o que tocava. Eu teria que esperar.
  O que a noite da minha primeira nudez me trazia era de certa forma semelhante ao que eu ansiava ao lançar mão de alguma de minhas armas do meu arsenal químico, repleto de venenos mortais, raríssimos e deliciosos, que me fazia sentir como as pessoas deveriam se sentir sem usar arsenal algum: Música de cheiro de cores de paixão e garras quebradas pelo desuso.
Esperei talvez um mês, talvez vinte minutos, mas a sujeira escura que me maculava a pele parou de jorrar, me fazendo perceber que ela ocupava o espaço que alguma coisa muito minha deveria ocupar, e que agora verdadeiramente ocupava. Também, com essa ausência seguida de preenchimento, percebi que o espaço em que eu vivia não deveria se limitar ao espaço que havia entre minhas orelhas. De alguma forma, a substância que ocupava minha cabeça tinha a estranha propriedade de manter cada pequeno pedaço do homem que eu era, unido, imóvel e absurdamente sozinho.
  Feita a limpeza (libertação, talvez), a chuva extinguiu do coração o grito que as pessoas ouviam sempre que se aproximavam de mim, e sendo essa a última célula maligna retirada, sem dor, de meu corpo, pude correr através da noite, através da chuva e através do infinito amor das coisas, pra longe do que me havia me ensinado que todo bicho está separado do mundo por uma pele. Talvez houvessem naquela noite outros bichos, talvez de outros tipos, sendo lavados, curados e iluminados, outros cães de rua como eu, firmes apesar da fraqueza e de muitas fomes, matando a curiosidade nas lixeiras da noite. Talvez houvesse, debaixo da luz de algum poste ali por perto, um bicho que quando me visse fosse para mim o que eu desejasse que ele fosse, assim como eu, mesmo antes da noite e da chuva e da sujeira e da nudez e do parto, era para os bichos que me encontravam exatamente o que eles desejavam que eu fosse.
  Estranho foi o desejo que me veio, de que a chuva se tornasse negra de repente e me enegrecesse todo, e que a vareta que mantinha minha cabeça erguida não houvesse deixado nenhum espaço, sendo prontamente substituída por uma pedra amarrada em volta do meu pescoço. Mas tal desejo era fruto de outras coisas, coisas que não haviam mais em bichos como eu, então o mordi e o estraçalhei, e o ordenei que nunca mais se reconstruisse, pois agora, e talvez para sempre, eu havia me transformado num estranhíssimo demônio da noite.