25 de novembro de 2015

 A última, sábia, bela e muito bem pensada estratégia para poder tocar as coisas sem incendiá-las foi, não antes de separar do meio de tantas cinzas o máximo possível de mim, criar uma imensa concha dourada de um material meio vergonha, meio coragem e então encaixar meu corpo nela e a arrastar através das coisas e pessoas sem nunca, nunca recuar.
Cada dia de profundo desencanto é um pouco mais sangrento que o anterior, porém, antes do mais recente desses dias mostrar as caras, tive a ideia de pensar em pássaros. Quando criança, costumava desenhar um pássaro com dois semicírculos, mas um pássaro desses não serviria. Na concha dourada em que vivi por meses havia muito espaço para pássaros, então joguei dentro dela os pássaros maiores, mais lindos e mais coloridos que pude encontrar. Sempre estive em brasas, meu corpo é carvão e queima mais rápido do que cresce, e a concha é escura, mas dentro dela ou com ela nas costas posso disfarçar as brasas e ser olhado sem asco, com o bônus de viver entre pássaros. Rasgarei o céu um dia? Ainda em vida? Queria mesmo é queimar o meu caminho solo adentro, cada vez mais fundo, até encontrar a semente de luz que mostrará para mim, pela primeira vez, meu rosto, mas essa opção nunca funcionou e só me trouxe buracos e mais buracos, em mim e em tudo que toquei.
 Pássaros. Pássaros podem ser sufocados, e meu corpo emana uma fumaça preta que fede e espanta pessoas, mas não mosquitos. Pássaros são pessoas ou mosquitos? Certamente pássaros são algum tipo de pessoa com a alma muito iluminada e muito elevada. De mim subiu essa fumaça que os matou, primeiro os menores, depois os maiores. De mim subiu essa fumaça que fez minha concha de dourada, negra. Me cercar de coisas belas não fez de mim belo. Nem máscaras, nem adiamentos, nem mentiras e nem a tão querida aniquilação de tudo o que eu represento.
Nunca fui senão concha e brasa, uma coisa de certa forma anulando a outra, dadas as devidas proporções. O máximo que posso alcançar é o resultado zero. Zero seria o suficiente pra alguém? Zero faria a luz que eu sei que existe em mim ofuscar a visão de quem me olhasse? Zero? Duas décadas e meia e ainda estou considerando o zero? Duas décadas e meia e tudo ainda se resume a bichos e fogo e cegueira e absurdo e todos os tipos de covardia? Eu tenho luz, eu sinto a luz, a luz que iluminaria a concha e o bicho que eu sou e os pássaros e as pessoas que não suportaram minha companhia e meu passado de péssima escolhas e meus saltos desesperados e o imenso amor que sinto pelas pessoas e tornaria o absurdo ainda mais absurdo, faria o absurdo cobrir todas as coisas que existem feito chuva entrando na terra, além das minhocas, além das raízes e além das pedras, quem sabe chegando à semente primordial, apenas para perceber que aquela luz é como a minha luz. Nunca tive a intenção de transformar luz em fogo, nunca tive a intenção de me metamorfosear para algo tão...tão o que mesmo? Indelicado, indelicado a ponto de não poder escorrer para baixo do chão. Mas a luz não se mostra e não se mostra e não se mostra e eu espero e espero e faço o que posso, enquanto vou queimando ou me escondendo, bruto e sujo, um brinquedo de plástico, o mais sábio de todos os brinquedos de plástico.

8 de novembro de 2015


.. que num momento certo, específico, com o Sol na altura exata, e no único lugar onde poderia acontecer e por onde eu estivesse passando, tudo acontecesse, esse "tudo" deve ser importantíssimo, mas ainda não pensei sobre o que ele possa ser. A questão é que se eu estivesse no lugar certo e na hora certa, brotaria um lembrança, algo antiquíssimo, talvez uma lembrança que tivesse sido dissolvida e agora ressurge como A Palavra Certa. Essa palavra meio estranha, como "estorcegar" escorreria da boca e no momento em que tocasse o solo, causaria um tremor. Após o tremor, abriria-se uma grossa rachadura na parede à minha frente um homem muito velho que com todo coração me desse boas-vindas ao Colossal Mundo, o único e verdadeiro mundo. Lá entrando, ficaria claro para mim que que o mundo que sempre amei e toquei e andei e vi coisas crescerem e coisas morrerem não era nada além de um tipo muito peculiar de delírio, que me fazia permanecer aquecido, embrulhado e completamente cego, talvez espremido dentro de uma cabeça maternal descomunal. Talvez, até antes do Sol atingir a posição exata no momento exato e comigo no lugar exato, eu não tivesse sido nada além de um feto, e esse momento nauseante deve ter sido meu nascimento. Mas para meu desalento, para minha cólera, esse foi meu único nascimento, só havia podido nascer uma mísera vez, e depois dissolveria. Além disso todo estrago já havia sido feito e cada nojento movimento que tinha feito, antes de nascer, em direção a cada erro, a cada ausência e desarmonia, e cada uma das gotas de veneno que engoli e cada morte que causei e cada ferida que abri na carne de muitos dos que, por algum segundo atravessaram meu caminho, todos esses desvarios, (de quem por medo de escolher coisa melhor, optou como filosofia de vida não entender absolutamente nada) realmente existiram, o que vivi não foi sonho, EU não fui sonho, e por cada cada uma das imprecisões cometidas pela minha alma, recebi no coração uma marca feita a fogo na forma de semicírculo, que hoje, caso cada corte tenha sido feito com esmero, tem a forma de uma flor. Então após meu nascimento, sem tanta pureza, mas nem por isso menos sagrado, a flor permaneceu no meu coração e criou brotos nos corpos daqueles que sofreram a fatalidade de terem tocado o que restava de meu sangue antigo (possivelmente seco, agora). Espero que essas coisas que irão crescer durante suas vidas inteiras, até passarem pelo segundo, terceiro, vigésimo parto, não os intoxiquem como o meu me intoxicou: com a mais profana falta de amor vinda do mais abissal desejo de amar. Covardemente,  em certos momentos do dia ou da noite (momentos onde o Sol está na altura exata etc.) desejo que esse nascimento faça algo dentro de mim se encher de possibilidades e de potencial para o acerto, e que, à medida que eu vá crescendo (mesmo com minha flor, mesmo com os cortes nos outros, mesmo com o obelisco de pedra que permaneceu sobre minhas costas após o parto e mesmo com o sentimento de que minha existência anterior não se redimiu nem tampouco fez com que os olhos dos outros se abaixassem um pouco (talvez 5 metros) para poderem me olhar e constatar que pareço mesmo uma pessoa, e no momento fresca, limpa, completamente vulnerável e recém-chegada. Mas à medida em que eu vá crescendo, vá cultivando a lucidez que nunca havia tido enquanto vivia minha vida anterior, e que por isso saiba usar as ferramentas do mundo como elas devem ser usadas: para iluminar o caminho alheio, suar, cuspir, espirrar, gozar e chorar apenas amor, por todas as coisas que compartilham comigo a experiência de nascer, exceto pela minha vida anterior, que, mesmo após séculos, nunca cicatrizou. Até o segundo parto, eu havia sido um corruptor, minúscula gota tóxica capaz de corromper caixas e caixas d'água. Teria preferido que, após o segundo parto, eu retornasse ao mundo vazio das coisas dos homens puro, inocente, sagrado (algo que apenas conseguimos ser quando nascemos), douradamente celestial.
Mas meu segundo parto teve mais de continuidade da antiga vida do que da promessa de...