PSICÓLOGO: Boa tarde, já são uma e meia.
HOMEM: Boa tarde, se isso faz diferença na minha chegada.
PSICÓLOGO: Se sente, por gentileza. Então...O que te traz aqui?
HOMEM: Na verdade era para o meu irmão estar aqui, após um terrível acidente de carro ele adquiriu o hábito igualmente terrível de comer brinquedos infantis.
PSICÓLOGO: Ah, sei quem é esse paciente. Atropelou uma vaca. O que o Senhor faz no lugar dele?
HOMEM: Ele não pôde vir, estava roubando brinquedos numa creche, deve demorar bastante.
PSICÓLOGO: Tudo bem, o senhor parece transtornado. Qual o seu problema?
HOMEM: São os espelhos, doutor. Tenho certeza que o homem que eu vejo no espelho não sou eu.
PSICÓLOGO: Como assim?
HOMEM: É isso mesmo, parece loucura, eu sei, por isso vim aqui. Toda vez que olho no espelho aquele homem está lá, olhando curioso e com medo pra mim. Isso, além de me constranger, é assustador, e ele se assusta quando eu me assusto, isso me assusta ainda mais, o que assusta ele mais ainda.
PSICÓLOGO: Entendo... Não seria porque aquele homem é o seu reflexo?
HOMEM: Deveria ser, eu sei. Mas ele não sou eu, ele é sólido demais, vazio demais...Tenho certeza que eu não sou assim, eu sou mais líquido, mais aderente, sei lá.
PSICÓLOGO: Líquido?
HOMEM: É uma metáfora.
PSICÓLOGO: Mas o quão líquido? Que nem água mesmo ou mais pastoso? Na textura de gel de cabelo, talvez.
HOMEM: Não tenho certeza, talvez entre a pasta de dente e o sorvete.
PSICÓLOGO (anotando): Sorvete...Tudo bem, e ele não é assim líquido? Me acho idiota ficarmos falando de liquidez.
HOMEM: Eu já disse que é só modo de falar. Eu sou mais espiritual, mais poético, algo assim. E liquidez é um conceito econômico, não estou tão mal assim.
PSICÓLOGO: Tudo bem, continue falando.
HOMEM: Eu não estou aqui pra te distrair.
PSICÓLOGO: Continue falando da sua relação com o homem do espelho.
HOMEM: Tudo bem. Eu sou uma pessoa, ele é só um monte de carne seca, talvez nem isso. Ele é o reflexo de carne seca, não tem nem DNA! Se aquele homem é o que as pessoas vêem quando olham pra mim, agora eu entendo porque eu não consegui comer minha secretária. Aquele homem no espelho não tem recheio, não tem inteligência, é só um animal, eu não sou assim, tenho certeza.
PSICÓLOGO: Você deve ter algum tipo de esquizofrenia ou transtorno de personalidade.
HOMEM: Isso não é tudo, tem a pior parte.
PSICÓLOGO: Que parte?
HOMEM: Eu acho que ele tomou meu lugar. Acho que ele me devorou enquanto eu dormia e agora eu vivo no estômago ou nos intestinos dele. E ele anda e fala e vive e faz tudo enquanto eu fico aqui dentro, é terrível a umidade de um intestino. Ele deve ser algum tipo de alien ou demônio que possui pessoas interessantes, porque eu sou interessante, tenho certeza. Ele é feio, chato e diz bobagens o tempo todo, e fica me encarando quando olho no espelho. Porra! Eu não fiz nada pra ele me encarar com tanta crueldade.
PSICÓLOGO: O tempo acabou.
HOMEM: Que tempo? Eu vou morrer, doutor?
PSICÓLOGO: A consulta, ela acabou. Tenho que ouvir outro louco, me desculpe.
HOMEM: Mas ela não deveria durar uma hora?
PSICÓLOGO: Você chegou 45 minutos atrasado. Vou lhe receitar uma caixa de Cloridrato hexadestilado de coentro, um comprimido a cada vez que você for se olhar no espelho. Não tome quando não for se olhar no espelho, as consequências podem ser desastrosas. Ninguém sabe o que acontece porque todos têm medo do que pode acontecer.
HOMEM: Tudo bem, obrigado.