31 de março de 2017

  Há olhos em absolutamente todas as coisas
  Há pelo menos um olho em cada uma das coisas que existem. Alguns muitíssimo pequenos, que caberiam na ponta de um alfinete. Dos pequenos, o que me parece mais mágico é o olhinho brilhante que desce pelo cabo do incenso, olhando a fumaça atravessando o ar. Há olhos imensos comparados a mim, esses me assustam e me deslumbram quando os vejo, pequenos trabalhos alquímicos me auxiliam a vê-los com mais clareza.
  Há olhos nos relógios, raivosos, e há olhos horríveis me esperando atrás das portas, esperando que eu as abra ou as feche ou entre ou saia ou fuja. Há um olho queimando no Sol, e os de minha mãe também queimam, quando ela está de frente a mim. Mas quando ela vira as costas, um rastro de olhos brilhantes, feitos apenas de lágrimas, se forma, um rastro que implora ser seguido.
  Há olhos vermelhos, pequeninos, chorando em cada uma de minhas mãos, sempre quis arrancá-los mas nunca tentei. Esses olhinhos me derramam baldes de sangue e suor por dia. Ás vezes vermelhos de fumaça, às vezes meio fechados, de pílulas ou cansaço, muitas vezes arregalados e inchados de espera, muitas vezes molhados e sempre arranhados, pois os cubro de mentira e drama. Como sou injusto!
  Há também em cada olho infinitos olhos. Olhos que observam os olhos que observam. Olhos que observam olhos que desejam que tudo se acabe em fogo.
  Alguns olhos até cantam, tenho certeza que já ouvi. O canto é sempre o mesmo, O Antigo Canto das Coisas Belas, foi o nome que dei. Todos conhecem esse canto que atravessa o ar, de pupila para pupila, entre piscadas e descanso. Deus, o ouvido visto.
Falando um pouco dos meus olhos –seriam realmente meus?-, não sei se realmente enxergam algum outro olho do mundo. Olhos ridículos! Olhos vis! Todo olhos e não olhas olho algum?
  Sei que os olhos das coisas existem e se estendem infinitamente, separados apenas por falso sangue. Olhos irmãos, o mesmo sangue e o mesmo desejo, mas paridos de duas mães: O choro do Mundo e A Raiva do Mundo. O que sei dessas bolas que superpopulam os espaços se resume a isso, pois tenho certeza que os olhos que me foram presenteados, por uma bênção ou por uma maldição, nunca viram absolutamente nada. Eu nunca vi absolutamente nada na vida. Um espelho provaria o contrário, mas o que vejo no olho choroso de um espelho foi algo que meus olhos(creio que são virados para dentro) viram na carne de dentro meu crânio.
  Olhar é dominar uma arte muito antiga e sagrada. Primeiramente o olho escolhe, segundo leis até hoje secretas, o que irá olhar. Raivosa ou Chorosa, a criatura arranca da coisa olhada partículas dela, como se laçasse um pequeno pedaço da coisa e puxasse até suas bocas, e então as mastiga. É assim que um Raivoso ou um Choroso aprende as coisas, as destruindo. É assim que tudo o que tem a capacidade de aprender, aprende. Olhar é destruir num imenso incêndio. Até o pequeno olho do incenso é em si um incêndio. Mas para que tudo o que é olhado não seja invariavelmente quebrado em mil pedaços, os olhadores experientes lançam de volta as partículas que foram destacadas e as devolvem no lugar, podendo assim, assimilar outras partes do que desejam conhecer sem destruir muita coisa. Olhar pode ser, se formos sábios (e não somos), pegar emprestado pedaços de algo.
  Olhei para o céu hoje, o único olho infinito do Universo, e que por isso não pode sem nem um olho pequenino, nem um olho imenso. Hoje, como em todos os outros dias, havia essa retina, azul, apontada diretamente para mim, se movendo enquanto eu me movia, me acompanhando e... Meu Deus! Arrancando pedaços de mim!
  O olho estraçalha o de fora para criar o de dentro, eu sei. Conheço os olhos como um cristal conhece e como a água conhece. Tudo, no mais perfeito dos casos, acaba em fogo. E nesse fogo de olhos matei minha inocência e minha vontade, queimei a linha fina sobre a qual construí minha morada.
  Eu sou olho-fogo e tudo acaba em mim. Sou o fim do mundo que traz a continuidade do mundo.




   E por tantas tardes escorri, frio, velho e taquicárdico, com venenos escorrendo de furos na pele, dando beijos secos e andando sempre muito rápido, que esqueci de manter os olhos abertos o tempo todo, não percebendo que o mundo estava cheio da poeira fina que caía sobre todas as coisas minhas. Poeira estranha, preta.. Velhice? Talvez nem poeira seja, talvez fossem as cinzas do grande incêndio que havia feito brasa do que no início, muito no início, foi madeira fresca molhada. Todo esse pó na garganta tornou rouco meu grito, minha fala arranhada e meus beijos duros. E por essas  tardes escorri como um prisioneiro se esmagando entre barras de ferro frio rumo a lugares outros, habitados por pessoas outras, com cheiros outros e um outro ar. Por essas tardes escorri ralo adentro, boca adentro, livro adentro, desejando escorrer por um cano enterrado infinitamente no solo, no solo cada vez mais duro, mais como meus beijos. um cano escuro, como uma veia, imperceptível e em si mesma desnecessária, até brotar na pele de uma criatura celestial que fosse só pele quente de carne quente de ossos quentes. Amolecer, escorrer, enterrar e brotar. Um imenso fruto de carne e ossos. Um fruto que se transformasse em algo que sem outra escolha apenas crescesse, esticando os dedos ao céu, ao único e indivisível céu. Essas tardes que se fizeram noites que se fizeram manhãs que se fizeram tardes me abriram um caminho reto até o outro lado do mundo, o outro lado de mim.

   Todos os que se foram nunca se foram de todo, foram deixados, talvez por descuido ou pressa pedaços que doem em quem fica. Pedaços delicados de pés que por eras andaram por ali, pequenas manchas de sangue incoagulável em tudo o que foi tocado. Pedaços, restos, reflexos, sombras, ossos do passado, ossos do passado dos outros presos na nossa vida presente, em nossa pele, nunca purificados nem pelos mais hábeis carniceiros. Eternamente sangue fresco. 
Quem fica também não pode fugir da culpa. Fico por ter deixado pedaços espinhosos demais por onde passei. De quem vai e de quem fica, o invariável é o que fere.