30 de junho de 2010

Estreitamento

Ele adorava o lusco-fusco. O céu escuro deixava as coisas muito fortes, porque era inevitável olhar um pouquinho mais pra dentro. O céu claro deixava tudo quente, isso desviava a concentração de qualquer criatura. O céu escuro faz todo mundo se perder um pouco, se distrair um pouco. Era no lusco-fusco que as coisas fluiam, a energia na frequência perfeita para se fazer coisas importantes. Todos os dias, antes de amanhecer, o homem acordava, fazia uma xícara de café forte sem açúcar e vestia uma calça de moletom cinza que começava a grudar no suor das coxas brancas e gordas assim que surgia o sol, ele colocava essa calça porque escondia a brancura e grossura das pernas. Pernas bonitas, aliás. Pena que o homem que corre com roupas ridíulas nunca as mostrou pra ninguém, por isso nunca teve uma opinião positiva. Não fazia diferença, uma opinião positiva não é lá uma coisa que muda nosso cotidiano. Então ele calçava os tênis dois números maior que o pé dele (porque isso fazia suas pernas parecerem menos grossas), uma camiseta e ia caminhar. O primeiro quilômetro era feito sem problemas, no fim do segundo ele suava feito um porco, as panturrilhas doíam, a cabeça latejava e ele andava dando pequenos saltos, como se estivesse prestes a cair para a frente. Então se arrastava de volta pra casa. Mas nada disso importava, afinal, o céu era sempre maravilhoso e a temperatura, ótima.

Fora o fato desse sofrimento autoinflingido sem necessidade, ele era normal. Normalmente obeso, número normal de amigos (nenhum), gostava de novelas, coxas de frango, coxas de mulheres e gostava sem motivo do som que fazem as rodas dos carros no asfalto molhado, acreditava vagamente ser por conta das chuvas escassas na cidade onde morava.

E vai-se essa uma hora e meia de felicidade, depois, trabalho. Ele trabalhava
numa fábrica de canetas, e era responsável por fazer aqueles furinhos nas canetas, "Eu quero um aumento" disse um dia ao chefe, "É muita pressão! Meu trabalho não reconhecido por ninguém! Ninguém sabe pra que servem esses furos, preciso de um incentivo.", e o seu chefe afirmou que todos sabiam que cada furo em cada caneta era uma forma de economizar o dinheiro do plástico, "Em 396 anos, nós poderemos comprar uma nova cafeteira! Não é genial?". Então o gordo que faz os furos inúteis nas canetas se entristeceu e explicou que os furos servem para o ar entrar no tubo de tinta das canetas, o ar ocupa o espaço da tinta que saiu, evitando que a caneta pare de funcionar e crie um vácuo, "Dizem que se várias pessoas tamparem o furo e começarem a escrever sem parar, criam-se pequenos buracos negros que podem se transformar em enormes buracos negros em questão de semanas. Eu salvo o mundo do apocalipse a cada vez que abaixo aquela pequena agulha e recebo menos que o cara que faz manutenção na máquina de capuccino!". Convincente. Ganhou uma máquina de capuccino perto do banco onde ele trabalha, em 58 anos conseguiria uma contaminação por mercúrio.

Todo esse trabalho cansava, apodrecia todo o potencial daquele homem supernutrido na beira da meia-idade, ele chorava às vezes no banheiro olhando para canetas. Ele queria ter poder para causar um apocalipse, "ou pelo menos uma catastrofezinha humilde.". Todo esse sofrimento desnecessário sumia quando ele saía do trabalho às cinco e meia da tarde, ele fingia que seus pulsos não doíam enquanto dirigia, balançando a mão direita sobre o volante e contraindo o abdômen a cada pontada no pulso, como um veado com cãibra. A felicidade de lusco-fusco já começava aí, antes mesmo do lusco-fusco.

Barulho de motor, o som das rodas dos carros sobre o asfalto seco, crestado. O cheiro sufocante de fumaça, o cansaço quase digestivo das pessoas nos carros semi-mortos no congestionamento quilométrico, milhomético? Às sextas-feiras eles beiravam o bilhométrico. Era tudo muito irritante e patético, era tudo muito irritante e patético todos os dias úteis às seis da tarde. E ele gordo e quente, suando na roupa puída e olhando calmo para cima. Era tudo muito lindo, o céu alaranjado-vermelho-roxo-preto era tudo o que ele tinha, tudo que sentia. Conseguiu se convencer que seu pulso não doía e então parou de doer. Os outros motoristas pararam de olhar estranho para o veado com cãibra no fusca. Imaginou que devia ser Deus, é isso, "Deus estava voltando do trabalho e passou por aqui, viu meu pulso e tirou a dor. Deus se concentrou em mim!", ele acreditava que para Deus a Terra era um formigueiro, e que por isso ele não podia cuidar de todo mundo. "Meu tamanho deve ter chamado a atenção d'Ele", pensou orgulhoso. Barulho de buzina. Então anoiteceu e ele olhou um pouquinho mais pra dentro, como todo mundo faz com essa iluminação natural alternativa, depois um pouco mais, pelo pulso que ele fingia que havia parado de doer. Depois muito mais.


29 de junho de 2010

Galo

15 anos, peitos novinhos, esses peitos recém-nascidos que conseguem tirar a concentração de qualquer homem, esses peitos que conquistam universos, que consomem vidas, destroem nações.

15 anos e com peitos perfeitos, ela poderia ganhar o mundo, iniciar batalhas, fazer dois homens e matarem, ela conseguiria o que quisesse.

15 anos e com peitos desenhados divinamente, um anjo, qualquer roupa nela era maravilhosa e qualquer maravilha perto dela era lixo hospitalar.

15 anos, com peitos maravilhosos e manca.

15 anos, manca.

Further Instructions

Ter o Pôr e o nascer do Sol, e a vida nesse espaço de tempo. Deitar em algum lugar confortável com cheiro de incenso ou vegetais frescos, onde o existir importe tanto quanto o não existir. Durante a noite, coçar onde não se coça e comer os medos uns dos outros, se fizer frio, uma fogueira. Se estiver quente, nudez. Som de gaita no fundo, músicas diversas escolhidas a esmo.

Didatismo

Orgulhoso, o menino segurou com seus dedos finos o cigarro roubado da bolsa da mãe, deu um trago curto e esforçado, tossiu a fumaça e olhou em volta, ansioso para que alguém tenha visto. Ela abria com dificuldade a garrafa de vodka comprada com o dinheiro do lanche economizado por semanas. Ele tinha doze, ela, treze. Um copo para cada seria o suficiente, eles haviam visto na televisão, talvez um pouco menos, para não ter uma ressaca horrível. Trêmulos, encheram os copos e beberam bem rápido, ele ameaçou vomitar mas logo retornou, feliz. A menina sorriu, o cabelo curto num corte desfiado, ela queria vermelho, mas a mãe não deixou. O menino dá outro trago no cigarro, algumas cinzas caem na pelugem ridícula cultivada com orgulho no queixo. Eram dois rebeldes, dois criminosos fazendo alguma coisa criminosa que nem eles sabiam bem de que se tratava. Ficaram ambos meio tontos, teriam algo interessantíssimo para contar aos colegas no dia seguinte, caso não fossem levados à força para alcatraz pelo exército americano. Foi um dia incrível até eles completarem dezessete.

(Sem título)

Houve um tempo em que minha cabeça flutuava levemente na fumaça fria e quieta da noite, e os
dias ameaçavam surgir gigantes a qualquer momento, como o instante que antecede o trovão.


Naquele tempo -e naquele tempo os instantes já faiscavam como um 'ontem' ou um 'amanhã'-
toda noite meus pensamentos eram errados, e minhas idéias se assombravam com o cheiro de
Deus. E Deus surgia à minha frente, com seu hálito quente, e gritava: "Exista, menino mendigo,
mesmo que isso te custe um braço!".

Eu obedecia, um servo silencioso, caminhava humilde para o caos. Durante o dia, a qualquer
momento, ele se chegava a mim com pena e asco, me levava a um canto escondido de mim e
dizia "Você não existe.". Assim formou-se uma tempestade, tão intensa e silenciosa quanto a
explosão de uma estrela. (Algum dia de 2007)


Diálogo Transversal

-Você está bem?

-Estou ótimo, não pareço bem?

-Está calado.

-Estou cansado.

-Você costumava falar muito, era confortável.

-As pessoas mudam.

-Deveriam mudar pra melhor.

-Não sei o que dizer.

-Antigamente quando você não tinha o que dizer, você falava de alguma idéia louca sua sobre casamento, nomadismo ou na pior das hipóteses, falava sobre a beleza de coisas aleatórias, como os tapetes da casa da sua tia.

-É o nosso ônibus.
...

-Então?

-Então o que?

-Fala alguma coisa.

-Ainda com isso? Tudo bem, eu gosto de...ler com a TV ligada.

-Não é a mesma coisa.

-Você não costumava reclamar de nada no tempo em que eu costumava falar sem parar.

-Acho que o tempo fez todo mundo se cercar.

-Você me desculpa?

-Pelo que?

-Por...Ah, eu desço aqui.


Importância Pequena ou Solta

Tenho a impressão que tudo me dói. Me dói ouvir "bom dia" de manhã, deveria ser proibido
doer qualquer coisa de manhã, mas não dormir anula quase tudo dessa coisa bonita que têm as
manhãs. Me dói tanto ouvir sins quanto nãos. Me dói mentirem pra mim, clichê. A felicidade dói
muito, principalmente se é esperada com passos indo e voltando impacientes ou quando
acontece no meio da tarde, o calor fermenta as coisas, as pessoas deveriam ser mais leves
durante o dia. Minha grande dor não dói muito, o que dói muito, porque a nossa grande
maravilhosa dor deve doer sempre, deve doer até envelhecermos e morrermos.

Amizades envelhecidas não deviam doer tanto, mas doem. A gente tem que saber que tudo
apodrece. Me doeu ver aqueles olhos caninos me fitando honestos, "desculpa, não posso fazer
nada, jogue esses olhos em outro, agora!" tive vontade dizer. Acho que disse isso com meus
olhos, não sei se pidões ou cansados. Talvez esperançosos, ter olhos esperançosos não é uma
coisa boa, isso dói quando olho o modo como meus olhos olham pra mim.

Mas doer é tão terrível assim? É errado? É um problema? Um desacerto? Talvez um
descompasso? Não, não é. Não se pode trocar uma dor por outra, mesmo que seja maior ou mais
urgente, talvez por isso as pessoas achem sofrer tão horrível, os motivos parecem sempre
insuficientes. Não são.

As dorezinhas pequenas que pipocam no meu dia como estalinhos...que coisa boba. Verdade, não
posso trocar por coisa maior. Eu sou bobo também.


Formigas

Estava caminhando no mato. Olhou pra baixo, e a impressão de que estava descalço no mato foi confirmada, num susto. Não podia estar caminhando num mato, a última lembrança que tem foi a de estar deitado na cama, olhando pro teto e imaginando se haveria alguma forma de dormir pra sempre. Agora estava caminhando rápido num campo de mato baixo, que se estendia por meio quilômetro para todos os lados e então -será possível?- a cidade. Sim, era mesmo a sua cidade, o seu bairro, reconhecia todos os prédios, o prédio branco com colunas verdes crestadas descascando, onde ele observava às vezes uma mulher tirar a roupa e examinar o próprio corpo com certo espanto, sempre ao mesmo horário. Quer horas seriam agora? Ele calculou que foi se deitar à uma da manhã, talvez tivesse ficado deitado por trinta minutos, um pouco mais?

É isso! pensou nervoso, "devo ter pegado no sono". Então parou e se sentou, estava assustado, não parecia em nada com um sonho. Examinou o corpo, tocou a barriga com os dedos e se golpeou no estômago com um soco, o mais forte que pôde. Perdeu o fôlego e caiu para o lado, desmaiado.

Acordou. Estava deitado no mato. Lembrou o que houve e se apavorou, os olhos insanos correndo todo espaço vazio à sua volta. "Meu Deus do céu!" chorou, "Isso não é um sonho, ninguém sonha que esteve desmaiado!". Duvidou do que acabara de dizer... a Deus? Ao mato baixo? A ele mesmo? Não importa, ele acabou de descobrir que esse campo de mato baixo fica no lugar exato de seu prédio. Como se no lugar de sua asa houvesse esse campo, estendido centenas de metros para todos os lado. Se assustou ainda mais, sempre foi um homem sólido, quase a solidez que todo homem deve ter, porém mais honesto. Tinha medo de coisas novas, nunca teve coragem de repintar as paredes infiltradas do apartamento, seria assombroso. Seu estômago roncou, puxando ele de volta ao gramado. Não era hora de pensar em infiltrações, ele ia pedir ajuda.

Começou a caminhar. Meu Deus! (desde pequeno aprendeu com o avô a exclamar "meu deus" por qualquer coisa, sua avó certa vez disse que para falar isso tem um preço, e que o dele seria enorme) Meu deus! caminhou mais rápido, seguindo em direção ao prédio com colunas verdes e uma mulher bonita dormindo no terceiro andar, terceira janela da esquerda para a direita, que ele gostava de observar. Estava tudo planejado: Ele chegaria até a rua e agiria como um estranho, "Havia um prédio aqui, não havia? Faz tempo que não venho a esse bairro...", e dependo da resposta que recebesse, calcularia o que fazer. "Que idéia ridícula, como eu sou covarde, é claro que o prédio sumiu, é claro que há um espaço muito maior que o que havia antes!" Gritou. Sua caminhada era agora quase uma corrida, caminhava como as pessoas apressadas que ele via caminhar loucas pela calçada, procurando alguma coisa. Vistas de longe parecem formigas enfileiradas buscando alimento. "Só que sem o alimento" se assustou com a própria voz, e logo depois do susto lembrou que era um covarde que se assustava até com a própria voz. Talvez ele seja uma formiga buscando coragem, caminhando pela calçada. Não, não era. Essa cidade...todas as cidades...são infestados dessas pessoas-formiga que caminham apressadas sem se darem conta que não carregam nada, tocando as anteninhas umas nas outras quando se esbarram. E ele era pior, era uma formiga covarde.

Perdeu o fôlegoe se sentou no chão, as duas mãos espalmadas no mato baixo, "tenho que parar de fumar". Uma formiga subiu em sua mão. Seria uma formiga corajosa ou uma covarde? Olhou para o prédio verde, parecia estar à mesma distância de antes de começar a caminhar. Ele caminhou muito, o prédio não se aproximava. "Eu nunca vou chegar lá!", quase soltou um alto e definitivo "Meus Deus!", mas lembrou de sua avó, e sua conta com deus já devia estar muito alta, então pensou rápido e disse "Merda!", começou a chorar e a esmurrar com força o chão com moitas baixas: "Merda! Merda! Merda Merda Merda!" Caiu no chão e chorou mais ainda. Quando parou de chorar decidiu chorar ainda mais, contraiu o rosto numa careta de dor e nojo e pena e ódio, e chorou mais um pouco, sem lágrimas.

Se amaldiçoou por ter chorado, por ter esmurrado o chão e os nós de sues dedos doerem, e se amaldiçoou por ter desejado dormir pra sempre minutos antes de acordar caminhando nessa prisão aberta. Formiga covarde e idiota andando sozinha.

"Eu não quero ser uma formiga!" gritou, "Aaaaah!". Se levantou olhando fixo pro prédio, primeiro andar, terceiro apartamento da esquerda para a direita. Começou a andar em sua direção. Andou mais rápido. Mais rápido ainda. Começou a correr. Correru o mais rápido que pôde, correu numa linha reta, suas pernas curtas não eram boas para orrida, constatou. Agora eu me vejo, sou a mulher no espelho sendo observada, e eu vou mostrar que não sou a porra de um covarde! O mato era mais alto agora, até a cintura, bom sinal, pelo menos estava saindo do lugar. O vento frio batia no corpo pela direita, vento seco e frio de julho golpeando com força o rosto vermelho. Decidiu correr mais rápido, não estava cansado, se inclinou mais para a frente, isso o faria instintivamente mover as pernas mais rápido para evitar uma queda. Ele não era um covarde, estava correndo rápido em direção ao prédio, um covarde não faria isso. Correu mais rápido, as pernas formigavam do joelho até os pés, o coração covarde batia desesperado, ele sorriu insano: "você não está acostumado com a coragem, amiguinho, aguente.". O mato agora batendo nos olhos, ele feroz saltando veloz entre os ramos, os olhos de bicho na janela de alumínio, só pararia quando não aguentasse mais. Não teve coragem de calcular se o prédio se aproximava ou não, mas não se culpou por isso, estava no delírio mais corajoso que tivera. Poderia correr pra sempre, poderia correr mesmo sem ar, mesmo sem pés, só precisava de uma janela de alumínio no primeiro andar, terceiro apartamento da esquerda para a direita, mulher se olhando estranha. Ele se olhava estranho agora, era alheio, formiga sozinha subindo no sapato. Seu joelho falhou, seu corpo capotou, deu duas cambalhotas e caiu, espatifado no mato alto. Meu Deus.

Da Sobrevida Cotidiana

Às vezes eu venho aqui ler um pedaço da vida de alguma pessoa dessa pequena horda de deprimidos, suicidas, azarados, solteiros irremediáveis e afins. Muita gente vem aqui às vezes, ler um inventário breve dos problemas físicos, psicológicos, amorosos, familiares, econômicos e sexuais de alguém quase sempre atrás do véu do anonimato. Como se ninguém pudesse gritar para o mundo inteiro ouvir: Eu sou um desesperado!

Esses inventários de problemas são feitos na maioria das vezes por alguém que de repente se desesperou com alguma coisa, entre todos os desesperos diários, e essa coisa foi um gatilho que acionou a lembrança de uma vida desgraçada. É o que chamamos de "a gota d'água", contra toda a pureza e simplicidade que uma gota de água pode trazer.

Às vezes nós não precisamos de alguém que nos proteja ou lute por nós, só queremos nos convencer que ali adiante existe alguém em uma situação mais digna de pena que a nossa, ou saber que nossos problemas e nossa batalha não são maiores que as de ninguém.

Às vezes eu vejo pessoas sem defesa. Pessoas que têm suas segundas-feiras destruídas por um olhar torto, que perdem o sono por um namorado que perdeu a paciência e que desistem de planos e sonhos por causa de palavras burras dos outros.

Cada um de nós, entre mortos e feridos, eufóricos e deprimidos, está em uma batalha, uma irrecusável fantástica batalha terrível e individual. Ninguém sabe quando começou, ninguém sabe se (ou quando) vai terminar e todos sabem que se vencermos essa batalha ganharemos o trófeu existencial e alcancaremos o topo da montanha de nós mesmos.
A graça dessa batalha é que ela é absolutamente individual, ninguém sabe qual a maior ou mais importante batalha, por isso todos achamos que a nossa é mais importante que a do resto da nossa espécie. Tudo se resolveria pelo simples contato, pelo choque dos sonhos, medos, armas e fraquezas de duas pessoas. "Oi, meu nome é João e eu sou feio, pobre, manco e careca.", "oi João, eu sou o pedro e meu cachorro morreu".
Esse contato existe, quando abraçamos alguém que amamos, quando choramos no colo de um amigo ou quando postamos nossas desgraças em comunidades do orkut.

Eu sou um desesperado, desde que aprendi o que é o desespero eu me descobri (inventei) desesperado. O desespero traz a falta de coerência, a falta de sentido, de valor e de alegria. Viver com desespero não é de se envergonhar, é como se a nossa alma estivesse sempre alerta, uma alma sozinha numa sala escura esperando fantasmas, gritos, a porta abrir ou o sol nascer. O desespero é extremamente volátil, explode como nitroglicerina a qualquer toque, como uma palavra ruim que entrou pelos ouvidos ou uma visão de alguém indo embora. Tudo explode. A terrível explosão da nossa alma destrói tudo que alcança, e só é barrada pela inviolabilidade da pele e dos pensamentos.(A mesma inviolabilidade da pele e pensamentos que nos impede de ter um contato de verdade).

E assim o nosso corpo queima por dentro, uma combustão tão óbvia e contida apenas por essa camada de pele que quase chegamos a crer que todos podem ver a nossa dor.

E então, com o corpo dissolvido, vagamos. Isso, vagamos. Não trabalhamos, dirigimos, comemos ou amamos, tudo se transforma num vagar. Todos ficam meio entorpecidos, como se a lembrança de antes de explodirmos ainda nos perturbasse. E essa lembrança vem a qualquer dia, a qualquer hora, como um gatilho, que foi acionado por um desespero diário, entre muitos outros desesperos que nos vêm. (10 de Março)

Das Madrugadas Cotidianas

As madrugadas atraem os desesperados como a chama de uma vela atrai mariposas. Essas são as horas dos loucos, dos perdidos e desajustados, alguns aproveitam o silêncio para ouvir mais humildemente o próprio choro, outros saem pelas ruas em jornadas inúteis por si mesmos e pela felicidade e todos se mantém alertas por um único motivo: À noite a nossa solidão se desavergonha e ultrapassa nossa pele, ela se ergue à nossa frente e nos olha nos olhos. Nessas horas tranquilas a solidão não é só um sentimento ou sensação, se torna quase matéria tangível, como poeira fina caindo sobre todas as coisas.

Toda tranquilidade esconde em si um desespero ainda maior e mais verdadeiro. Apesar de toda essa tranquilidade desse período do dia, apesar dessas 3 ou 4 horas de cessar-fogo existencial usarem máscaras benevolentes, as madrugadas são enormes catalisadores de sentimentos e sensações. O amor é mais amor, o ódio mais ódio, e o desespero ainda mais sólido. Nos permitimos chorar alto da mesma forma que nos permitimos sair na varanda de cuecas e pantufas.

Se você estiver um uma cidade de madrugada e fizer silêncio total, ficando atento a qualquer som, é possível ouvir o som que todas as cidades fazem, um som contínuo e quase metálico, como um como um coração subterrâneo gigantesco abaixo de nossos pés. O som em nada se parece com batimentos cardíacos, soa mais como um enorme motor funcionando ininterruptamente e alimentando os sonhos dos que dormem.

Às vezes nos sentimos sozinhos mesmo enquanto estamos sendo esmagados por uma multidão, mas quando se está respirando a solidão, sem um ser humano alerta em 1 ou 2 quilômetros de nós, a solidão pesa demais. A dor da solidão nunca foi maior que a dor constante que sempre dói, essa que nos impede de dormir e que nos impede de acordar de manhã e dizer para nós mesmos: O dia de hoje pode ser maravilhoso. O dia de hoje não vai ser maravilhoso, nem o de amanhã, nem o de depois de amanhã.
Pra falar a verdade, se você continuar entorpecido por essa dor, nenhum dia vai ser maravilhoso nunca mais, e você nunca vai fazer parte dessa máquina gigante da qual todas as pessoas são uma engrenagem, dormindo e girando, felizes.

Mas nós não temos opção, quando não se tem nada até a dor serve de apoio para os pés, para pararmos de cair entorpecidos, até não ser ninguém de repente se torna ser alguma coisa, e nessa máquina maldita, nós não somos ninguém. Nós somos engrenagens girando sozinhas, sem fazer parte de alguma máquina que possivelmente tem alguma utilidade. Nós somos engrenagens frias girando sozinhas em eixos frouxos, e enquanto todos dormem girando a máquina, nós giramos silenciosos sem sermos percebidos, antes de amanhecer e nós nos arrastarmos para mais um dia longo e difícil.

Se pudéssemos escolher um horário para cada categoria de pessoas, essas horas inertes e impuras seriam as nossas, as horas dos loucos e insatisfeitos. Isso, somos ovelhas loucas e sozinhas, desgarradas do bando. Com loucos olhos chorando sem ninguém ouvir, patas loucas caminhando para qualquer lugar e um duvidoso coração orgânico batendo sem sentido e igualmente louco no peito.

Sempre é mais fácil chorar na madrugada, os pensamentos se aceleram, o sofrimento se torna agudo e as lágrimas quase explodem como estalinhos. Sim, nós somos um motor funcionando triste e barulhento no meio da noite, um motor de geladeira fazendo seu papel inútil enquanto todos dormem.

Não importa se somos ovelhas loucas, engrenagens frias ou motores trabalhando no silêncio do sono, além da dor que sempre dói nós sempre teremos o abraço frio e o ar fino de uma madrugada, talvez encontremos outra ovelha chorando pelas ruas, existem muitas por aí. Talvez se encontrarmos outra engrenagem fria e frouxa poderemos encaixar os nossos dentes nos dela, fazendo assim uma pequena estrutura mecânica um pouco mais firme, e o melhor, talvez isso gere calor!
A todas as abandonadas ovelhas loucas chorando por aí com olhos loucos, cansados sem poderem dormir, façam um pouco de silêncio, parem de chorar e de gritar para si mesmas, ouçam além do grande coração mecânico de uma cidade enquanto dorme, se você se atentar, se apurar os ouvidos, talvez possa ouvir algum outro desgarrado, para que, de longe, chorem juntos. (11 de março de 2010)

Se eu Fosse Eu

Ele não sabia se todos eram como ele. Às vezes de repente, assim no meio da noite ou enquanto caminhava na rua ou barbeava seu rosto ossudo e anguloso, vinha um lampejo de esperança, um desconcerto nas idéias: Preciso fazer algo urgente para me tornar uma pessoa melhor. Nunca acreditou em duendes, anjos da guarda, mágica ou paranormalidade, para ele essas coisas eram outros desconcertos, desequilíbrios que só surgiam quando o universo perdia o foco ou o prumo, e logo desapareciam. A questão é que ele nunca soube de onde vinham esses lampejos. Não acreditava que algo tão lindo pudesse estar saindo com certa frequência de sua cabeça (ou coração, ou alma, ou insatisfação, tanto faz), mas de fato saía.

"Vou escrever um livro", decidiu definitivo uma vez. Sete dias depois 4 folhas de papel mal escritas foram jogadas no lixo junto com uma dúzia de lágrimas. Outra vez decidiu viajar. "Viajar é uma coisa boa, todos pensam em viajar. Amanhecer cada dia em um lugar novo, conhecer outras pessoas, outras culturas, dá pra ser alguém novo todos os dias. Além disso eu fui feito pra isso, tenho corpo e alma de aventureiro. É isso, vou viver na estrada.". Dez dias de estradas sem graça, pessoas mal-humoradas, paisagens feias, mosquitos, comida ruim, banho mal tomado e bolhas nos pés, e logo a mochila enorme estava encostada num canto da garagem, molhada com outra dúzia de lágrimas. Todos os dias fazia alguma coisa imaginando estar ajudando a si mesmo a se tornar uma pessoa fantástica. Às vezes passava trinta minutos escovando os dentes, até as gengivas começarem a sangrar, "a pessoa que eu quero ser tem dentes limpíssimos", justificava. Um dia estava preso no trânsito pensando se mudaria ou não o trecho para o trabalho. "Se eu fosse eu, enfrentaria com coragem esse engarrafamento infernal ou faria uma manobra audaciosa, mudando o trecho?". Entrou em colapso nessa dúvida, deixou o carro morrer, ficou tonto e voltou a si depois de 10 buzinadas raivosas. Trilha sonora para mais alguns mililitros de autopiedade. Voltou pra casa e decidiu que nunca mais seria alguém melhor.

Seu corpo mirrado de aventureiro de 52 quilos já gritava os 42 anos de idade. Rugas, cansaço, desprazer, isso tudo o assustava. Nunca escreveu um livro, não fez uma maravilhosa viagem, nunca fez um ménage a trois com 2 mulatas, não quebrou o nariz do chefe e nunca fez nada que o fizesse sentir um homem fantástico. Não que não tenha tentado, e tentou até morrer, chorou pelo menos 3 vezes por semana repetindo que nunca mais tentaria ser mais especial, mas logo voltava a tentar: "O homem que eu quero ser não fumaria um cigarro agora", "Se eu fosse eu, eu colocaria mostarda ao invés de maionese, pois o sabor da mostarda deve refletir perfeitamente minha honestidade.". O homem que ele queria ser o machucou durante toda vida e nunca deu sinal de estar chegando, ah, se ele tivesse sido ele mesmo.