31 de março de 2017

  Há olhos em absolutamente todas as coisas
  Há pelo menos um olho em cada uma das coisas que existem. Alguns muitíssimo pequenos, que caberiam na ponta de um alfinete. Dos pequenos, o que me parece mais mágico é o olhinho brilhante que desce pelo cabo do incenso, olhando a fumaça atravessando o ar. Há olhos imensos comparados a mim, esses me assustam e me deslumbram quando os vejo, pequenos trabalhos alquímicos me auxiliam a vê-los com mais clareza.
  Há olhos nos relógios, raivosos, e há olhos horríveis me esperando atrás das portas, esperando que eu as abra ou as feche ou entre ou saia ou fuja. Há um olho queimando no Sol, e os de minha mãe também queimam, quando ela está de frente a mim. Mas quando ela vira as costas, um rastro de olhos brilhantes, feitos apenas de lágrimas, se forma, um rastro que implora ser seguido.
  Há olhos vermelhos, pequeninos, chorando em cada uma de minhas mãos, sempre quis arrancá-los mas nunca tentei. Esses olhinhos me derramam baldes de sangue e suor por dia. Ás vezes vermelhos de fumaça, às vezes meio fechados, de pílulas ou cansaço, muitas vezes arregalados e inchados de espera, muitas vezes molhados e sempre arranhados, pois os cubro de mentira e drama. Como sou injusto!
  Há também em cada olho infinitos olhos. Olhos que observam os olhos que observam. Olhos que observam olhos que desejam que tudo se acabe em fogo.
  Alguns olhos até cantam, tenho certeza que já ouvi. O canto é sempre o mesmo, O Antigo Canto das Coisas Belas, foi o nome que dei. Todos conhecem esse canto que atravessa o ar, de pupila para pupila, entre piscadas e descanso. Deus, o ouvido visto.
Falando um pouco dos meus olhos –seriam realmente meus?-, não sei se realmente enxergam algum outro olho do mundo. Olhos ridículos! Olhos vis! Todo olhos e não olhas olho algum?
  Sei que os olhos das coisas existem e se estendem infinitamente, separados apenas por falso sangue. Olhos irmãos, o mesmo sangue e o mesmo desejo, mas paridos de duas mães: O choro do Mundo e A Raiva do Mundo. O que sei dessas bolas que superpopulam os espaços se resume a isso, pois tenho certeza que os olhos que me foram presenteados, por uma bênção ou por uma maldição, nunca viram absolutamente nada. Eu nunca vi absolutamente nada na vida. Um espelho provaria o contrário, mas o que vejo no olho choroso de um espelho foi algo que meus olhos(creio que são virados para dentro) viram na carne de dentro meu crânio.
  Olhar é dominar uma arte muito antiga e sagrada. Primeiramente o olho escolhe, segundo leis até hoje secretas, o que irá olhar. Raivosa ou Chorosa, a criatura arranca da coisa olhada partículas dela, como se laçasse um pequeno pedaço da coisa e puxasse até suas bocas, e então as mastiga. É assim que um Raivoso ou um Choroso aprende as coisas, as destruindo. É assim que tudo o que tem a capacidade de aprender, aprende. Olhar é destruir num imenso incêndio. Até o pequeno olho do incenso é em si um incêndio. Mas para que tudo o que é olhado não seja invariavelmente quebrado em mil pedaços, os olhadores experientes lançam de volta as partículas que foram destacadas e as devolvem no lugar, podendo assim, assimilar outras partes do que desejam conhecer sem destruir muita coisa. Olhar pode ser, se formos sábios (e não somos), pegar emprestado pedaços de algo.
  Olhei para o céu hoje, o único olho infinito do Universo, e que por isso não pode sem nem um olho pequenino, nem um olho imenso. Hoje, como em todos os outros dias, havia essa retina, azul, apontada diretamente para mim, se movendo enquanto eu me movia, me acompanhando e... Meu Deus! Arrancando pedaços de mim!
  O olho estraçalha o de fora para criar o de dentro, eu sei. Conheço os olhos como um cristal conhece e como a água conhece. Tudo, no mais perfeito dos casos, acaba em fogo. E nesse fogo de olhos matei minha inocência e minha vontade, queimei a linha fina sobre a qual construí minha morada.
  Eu sou olho-fogo e tudo acaba em mim. Sou o fim do mundo que traz a continuidade do mundo.




   E por tantas tardes escorri, frio, velho e taquicárdico, com venenos escorrendo de furos na pele, dando beijos secos e andando sempre muito rápido, que esqueci de manter os olhos abertos o tempo todo, não percebendo que o mundo estava cheio da poeira fina que caía sobre todas as coisas minhas. Poeira estranha, preta.. Velhice? Talvez nem poeira seja, talvez fossem as cinzas do grande incêndio que havia feito brasa do que no início, muito no início, foi madeira fresca molhada. Todo esse pó na garganta tornou rouco meu grito, minha fala arranhada e meus beijos duros. E por essas  tardes escorri como um prisioneiro se esmagando entre barras de ferro frio rumo a lugares outros, habitados por pessoas outras, com cheiros outros e um outro ar. Por essas tardes escorri ralo adentro, boca adentro, livro adentro, desejando escorrer por um cano enterrado infinitamente no solo, no solo cada vez mais duro, mais como meus beijos. um cano escuro, como uma veia, imperceptível e em si mesma desnecessária, até brotar na pele de uma criatura celestial que fosse só pele quente de carne quente de ossos quentes. Amolecer, escorrer, enterrar e brotar. Um imenso fruto de carne e ossos. Um fruto que se transformasse em algo que sem outra escolha apenas crescesse, esticando os dedos ao céu, ao único e indivisível céu. Essas tardes que se fizeram noites que se fizeram manhãs que se fizeram tardes me abriram um caminho reto até o outro lado do mundo, o outro lado de mim.

   Todos os que se foram nunca se foram de todo, foram deixados, talvez por descuido ou pressa pedaços que doem em quem fica. Pedaços delicados de pés que por eras andaram por ali, pequenas manchas de sangue incoagulável em tudo o que foi tocado. Pedaços, restos, reflexos, sombras, ossos do passado, ossos do passado dos outros presos na nossa vida presente, em nossa pele, nunca purificados nem pelos mais hábeis carniceiros. Eternamente sangue fresco. 
Quem fica também não pode fugir da culpa. Fico por ter deixado pedaços espinhosos demais por onde passei. De quem vai e de quem fica, o invariável é o que fere.

25 de novembro de 2015

 A última, sábia, bela e muito bem pensada estratégia para poder tocar as coisas sem incendiá-las foi, não antes de separar do meio de tantas cinzas o máximo possível de mim, criar uma imensa concha dourada de um material meio vergonha, meio coragem e então encaixar meu corpo nela e a arrastar através das coisas e pessoas sem nunca, nunca recuar.
Cada dia de profundo desencanto é um pouco mais sangrento que o anterior, porém, antes do mais recente desses dias mostrar as caras, tive a ideia de pensar em pássaros. Quando criança, costumava desenhar um pássaro com dois semicírculos, mas um pássaro desses não serviria. Na concha dourada em que vivi por meses havia muito espaço para pássaros, então joguei dentro dela os pássaros maiores, mais lindos e mais coloridos que pude encontrar. Sempre estive em brasas, meu corpo é carvão e queima mais rápido do que cresce, e a concha é escura, mas dentro dela ou com ela nas costas posso disfarçar as brasas e ser olhado sem asco, com o bônus de viver entre pássaros. Rasgarei o céu um dia? Ainda em vida? Queria mesmo é queimar o meu caminho solo adentro, cada vez mais fundo, até encontrar a semente de luz que mostrará para mim, pela primeira vez, meu rosto, mas essa opção nunca funcionou e só me trouxe buracos e mais buracos, em mim e em tudo que toquei.
 Pássaros. Pássaros podem ser sufocados, e meu corpo emana uma fumaça preta que fede e espanta pessoas, mas não mosquitos. Pássaros são pessoas ou mosquitos? Certamente pássaros são algum tipo de pessoa com a alma muito iluminada e muito elevada. De mim subiu essa fumaça que os matou, primeiro os menores, depois os maiores. De mim subiu essa fumaça que fez minha concha de dourada, negra. Me cercar de coisas belas não fez de mim belo. Nem máscaras, nem adiamentos, nem mentiras e nem a tão querida aniquilação de tudo o que eu represento.
Nunca fui senão concha e brasa, uma coisa de certa forma anulando a outra, dadas as devidas proporções. O máximo que posso alcançar é o resultado zero. Zero seria o suficiente pra alguém? Zero faria a luz que eu sei que existe em mim ofuscar a visão de quem me olhasse? Zero? Duas décadas e meia e ainda estou considerando o zero? Duas décadas e meia e tudo ainda se resume a bichos e fogo e cegueira e absurdo e todos os tipos de covardia? Eu tenho luz, eu sinto a luz, a luz que iluminaria a concha e o bicho que eu sou e os pássaros e as pessoas que não suportaram minha companhia e meu passado de péssima escolhas e meus saltos desesperados e o imenso amor que sinto pelas pessoas e tornaria o absurdo ainda mais absurdo, faria o absurdo cobrir todas as coisas que existem feito chuva entrando na terra, além das minhocas, além das raízes e além das pedras, quem sabe chegando à semente primordial, apenas para perceber que aquela luz é como a minha luz. Nunca tive a intenção de transformar luz em fogo, nunca tive a intenção de me metamorfosear para algo tão...tão o que mesmo? Indelicado, indelicado a ponto de não poder escorrer para baixo do chão. Mas a luz não se mostra e não se mostra e não se mostra e eu espero e espero e faço o que posso, enquanto vou queimando ou me escondendo, bruto e sujo, um brinquedo de plástico, o mais sábio de todos os brinquedos de plástico.

8 de novembro de 2015


.. que num momento certo, específico, com o Sol na altura exata, e no único lugar onde poderia acontecer e por onde eu estivesse passando, tudo acontecesse, esse "tudo" deve ser importantíssimo, mas ainda não pensei sobre o que ele possa ser. A questão é que se eu estivesse no lugar certo e na hora certa, brotaria um lembrança, algo antiquíssimo, talvez uma lembrança que tivesse sido dissolvida e agora ressurge como A Palavra Certa. Essa palavra meio estranha, como "estorcegar" escorreria da boca e no momento em que tocasse o solo, causaria um tremor. Após o tremor, abriria-se uma grossa rachadura na parede à minha frente um homem muito velho que com todo coração me desse boas-vindas ao Colossal Mundo, o único e verdadeiro mundo. Lá entrando, ficaria claro para mim que que o mundo que sempre amei e toquei e andei e vi coisas crescerem e coisas morrerem não era nada além de um tipo muito peculiar de delírio, que me fazia permanecer aquecido, embrulhado e completamente cego, talvez espremido dentro de uma cabeça maternal descomunal. Talvez, até antes do Sol atingir a posição exata no momento exato e comigo no lugar exato, eu não tivesse sido nada além de um feto, e esse momento nauseante deve ter sido meu nascimento. Mas para meu desalento, para minha cólera, esse foi meu único nascimento, só havia podido nascer uma mísera vez, e depois dissolveria. Além disso todo estrago já havia sido feito e cada nojento movimento que tinha feito, antes de nascer, em direção a cada erro, a cada ausência e desarmonia, e cada uma das gotas de veneno que engoli e cada morte que causei e cada ferida que abri na carne de muitos dos que, por algum segundo atravessaram meu caminho, todos esses desvarios, (de quem por medo de escolher coisa melhor, optou como filosofia de vida não entender absolutamente nada) realmente existiram, o que vivi não foi sonho, EU não fui sonho, e por cada cada uma das imprecisões cometidas pela minha alma, recebi no coração uma marca feita a fogo na forma de semicírculo, que hoje, caso cada corte tenha sido feito com esmero, tem a forma de uma flor. Então após meu nascimento, sem tanta pureza, mas nem por isso menos sagrado, a flor permaneceu no meu coração e criou brotos nos corpos daqueles que sofreram a fatalidade de terem tocado o que restava de meu sangue antigo (possivelmente seco, agora). Espero que essas coisas que irão crescer durante suas vidas inteiras, até passarem pelo segundo, terceiro, vigésimo parto, não os intoxiquem como o meu me intoxicou: com a mais profana falta de amor vinda do mais abissal desejo de amar. Covardemente,  em certos momentos do dia ou da noite (momentos onde o Sol está na altura exata etc.) desejo que esse nascimento faça algo dentro de mim se encher de possibilidades e de potencial para o acerto, e que, à medida que eu vá crescendo (mesmo com minha flor, mesmo com os cortes nos outros, mesmo com o obelisco de pedra que permaneceu sobre minhas costas após o parto e mesmo com o sentimento de que minha existência anterior não se redimiu nem tampouco fez com que os olhos dos outros se abaixassem um pouco (talvez 5 metros) para poderem me olhar e constatar que pareço mesmo uma pessoa, e no momento fresca, limpa, completamente vulnerável e recém-chegada. Mas à medida em que eu vá crescendo, vá cultivando a lucidez que nunca havia tido enquanto vivia minha vida anterior, e que por isso saiba usar as ferramentas do mundo como elas devem ser usadas: para iluminar o caminho alheio, suar, cuspir, espirrar, gozar e chorar apenas amor, por todas as coisas que compartilham comigo a experiência de nascer, exceto pela minha vida anterior, que, mesmo após séculos, nunca cicatrizou. Até o segundo parto, eu havia sido um corruptor, minúscula gota tóxica capaz de corromper caixas e caixas d'água. Teria preferido que, após o segundo parto, eu retornasse ao mundo vazio das coisas dos homens puro, inocente, sagrado (algo que apenas conseguimos ser quando nascemos), douradamente celestial.
Mas meu segundo parto teve mais de continuidade da antiga vida do que da promessa de...

28 de setembro de 2015

  A chuva cai como se o céu chorasse, porque nesse momento eu choro também, e meu pequeno choro reflete o grande choro. É importante que o de-dentro esteja acompanhando de perto o de-fora, ao contrário do que nos foi passado terrivelmente no coração como uma doença: Não podes estar nu o tempo todo, inclusive estejas nu o mínimo possível. E assim fui me jogando pelos cantos da vida, com medo da nudez, todo tipo de nudez. Então nessa noite em  as gotas de chuva caíam do alto de algum lugar sagrado, algo como sementes de uma planta cujas flores possuíssem propriedades mágicas, uma dessas sementes entrou pelo meu nariz ou orelha, causando bem lá dentro um tremor orgânico que me encharcou a ponto de criar uma necessidade imensa de estar nu. Eu já conhecia a nudez, todos nós conhecemos, nascemos com tudo nu. Mas decidi que a nudez que viria seria como a nudez primordial, a pequena nudez de sangue e ossos e sono com sonhos. Além de estar nu pela primeira vez (mesmo que fosse a quadricentésima vez), houve em mim um parto, o parto da grande e única noite que desde os meus primeiros pelos crescia em mim como um feto antiquíssimo. Pus de fora corpo e coração.
  Para sofrer menos, eu passava o dia equilibrando na ponta do nariz uma vareta imaginária, que não por acaso era muitíssimo pesada, mas nessa noite a vareta caiu e por isso me desesperei, pois talvez minha cabeça caísse pra frente em súplica e remorso. Estranhamente, meu nariz continuou no lugar, apontando com orgulho para cima. Pela primeira vez nu e pela primeira vez sem a maldita vareta.
  A nudez, no entanto, ainda não estava completa, pois sentia escorrendo de minhas orelhas algo viscoso que me cobria os ombros e me sujava do peito às pernas. Pus um pouco da gosma na ponta do dedo, era quase preta. Imaginei que essa substância estivesse sendo represada dentro de mim por uma represa levíssima e invisível, da qual só tomei conhecimento quando, num estrondo silencioso, eclodiu e liberou uma quantidade imensa dessa substância pelos lados de minha cabeça, cobrindo, por acidente, minha nudez. A sensação era de que a forte corrente que eu me esforçava para que me carregasse era não só de água da chuva, mas também dessa substância preta e estranha que eu sabia que sujava o que tocava. Eu teria que esperar.
  O que a noite da minha primeira nudez me trazia era de certa forma semelhante ao que eu ansiava ao lançar mão de alguma de minhas armas do meu arsenal químico, repleto de venenos mortais, raríssimos e deliciosos, que me fazia sentir como as pessoas deveriam se sentir sem usar arsenal algum: Música de cheiro de cores de paixão e garras quebradas pelo desuso.
Esperei talvez um mês, talvez vinte minutos, mas a sujeira escura que me maculava a pele parou de jorrar, me fazendo perceber que ela ocupava o espaço que alguma coisa muito minha deveria ocupar, e que agora verdadeiramente ocupava. Também, com essa ausência seguida de preenchimento, percebi que o espaço em que eu vivia não deveria se limitar ao espaço que havia entre minhas orelhas. De alguma forma, a substância que ocupava minha cabeça tinha a estranha propriedade de manter cada pequeno pedaço do homem que eu era, unido, imóvel e absurdamente sozinho.
  Feita a limpeza (libertação, talvez), a chuva extinguiu do coração o grito que as pessoas ouviam sempre que se aproximavam de mim, e sendo essa a última célula maligna retirada, sem dor, de meu corpo, pude correr através da noite, através da chuva e através do infinito amor das coisas, pra longe do que me havia me ensinado que todo bicho está separado do mundo por uma pele. Talvez houvessem naquela noite outros bichos, talvez de outros tipos, sendo lavados, curados e iluminados, outros cães de rua como eu, firmes apesar da fraqueza e de muitas fomes, matando a curiosidade nas lixeiras da noite. Talvez houvesse, debaixo da luz de algum poste ali por perto, um bicho que quando me visse fosse para mim o que eu desejasse que ele fosse, assim como eu, mesmo antes da noite e da chuva e da sujeira e da nudez e do parto, era para os bichos que me encontravam exatamente o que eles desejavam que eu fosse.
  Estranho foi o desejo que me veio, de que a chuva se tornasse negra de repente e me enegrecesse todo, e que a vareta que mantinha minha cabeça erguida não houvesse deixado nenhum espaço, sendo prontamente substituída por uma pedra amarrada em volta do meu pescoço. Mas tal desejo era fruto de outras coisas, coisas que não haviam mais em bichos como eu, então o mordi e o estraçalhei, e o ordenei que nunca mais se reconstruisse, pois agora, e talvez para sempre, eu havia me transformado num estranhíssimo demônio da noite.

3 de junho de 2015

  Mas como eu explico que somos todos a mesma coisa? A mesma substância sagrada transmutada do amor, do silêncio, da terra, do sal, do verbo, no improvável. Talvez eu seja mesmo algo dentro de algo dentro de algo dentro de algo lindíssimo e imortal, algo misterioso de precisão matemática, que me redima de toda vileza, imundície e desacerto que por tanto tempo mergulhei e por tão pouco, mas não sem mácula, atravessei sem coragem.
  Quanto? Quanto de mim ficou preso nos espinhos, nas quinas, na areia e nas solas dos sapatos? Quantas pessoas deixaram em mim, sem dor, buracos no peito? Por que encher de lágrimas os buracos que com muito sofrimento e sem querer já fizemos uns nos outros? 
  Por te amar me fiz pequeno.
  Por te querer me envergonhei.
  Me lanço, sim, mais uma vez, nesse mar que me arrasta e me arrasta, sem costa, sem praia, sem terra, sem nada, e sorrateiro vou, por baixo, pelo meio das pernas(tranquilas?) enormes com pés enormes com dedos enormes com enorme saudade, rente ao solo,  até alcançar um ponto limpo e livre de fumaça onde eu possa respirar sem tossir essa poeira que impregna o de fora e o de dentro, até conseguir por entre toda a poluição que me arde os olhos e o coração abrir uma fresta de ar fresco por onde eu vá me transportando levemente como uma linha numa agulha para o intangível, o inexprimível mas não mais intocável de-fora. E não me surpreende o quanto de mim encontro nesse lugar, o quanto de mim está no outro, o quanto de mim se localiza sempre no além. Sempre fui um ser no outro e do outro, sempre caminhei os caminhos dos outros, plantei nas terras dos outros e fui também sem vergonha, um outro em mim, e quando estive realmente em mim sempre olhei com estranheza, criança se olhando no espelho. Meu tempo também é dos outros, minha alegria, nos outros a acho, e minha paz, também nos outros. Tudo, talvez, por  vergonha de estar completamente em mim. Que, por Deus, eu nunca encare de novo minha nudez, nunca vire para dentro meus olhos e mãos, mãos essas que espremeriam meu coração, que estapeariam o que de mais sagrado eu penso, mãos que se encharcariam de sangue, que respingaria em quem estivesse à minha volta, talvez quando eu estivesse no meio da rua, no meio da gente, do Sol, do fôlego. Por vergonha, me desculpe, mas ainda não.

23 de abril de 2015

  Fazia tempo que não dormia e por isso via o bicho com maior frequência, flutuando entre as pessoas, como se nadasse, todo marrom acinzentado, os olhões abertos sem piscar e a boca querendo botar pra fora que o bicho não era mais gente, era só bicho e pronto. E por cordialidade uma moça me perguntou: "como vai?", respondi "me amedrontando eu vou", e ela arregalou os olhos por um instante feito o bicho que apesar de não estar presente no momento, estava sempre presente. Bastava que meus nervos se alterassem, mesmo que levemente, para que o bicho aparecesse flutuando entre as coisas, talvez para me lembrar que depois de muitos anos nesse mundo, percebi que passei a maior parte da minha vida do avesso, com os nervos e as veias vermelhas à mostra, os órgãos pendurados, os olhos vendo só o de-dentro. A gente procura a felicidade nos buracos mais escabrosos. Eu não sabia disso até perceber que passei a maior parte da vida do avesso, procurando a felicidade no extremo oposto das coisas. O bicho não dizia nada, mas se dissesse, imagino que seria algo como "és inteiro? pois agora morre" ou coisa assim, como as coisas que eu costumava acreditar quando estava ainda impregnado de pureza, mas que acreditava sem saber os nomes e sem ter ainda a  atitude egoísta de tentar me enxergar, com pressa, em cada coisa que tocava o meu dia. Então quando comecei, por puro conforto de espírito, a me ver não mais como o bicho que me seguia e que de alguma forma obviamente era eu, mas como, ainda um pouco incerto, as pessoas lindíssimas que haviam, por sorte ou não, decidido por um instante congelado ficar ao meu lado, a dubiedade tomou conta, inundou mais uma vez o que antes havia claramente escolhido um dos muitos lados. Foi quando o bicho passou a ficar  mais perto. Primeiro aparecia para mim somente quando eu estava prestes a dormir. Sacudia o seu corpo escamoso e vinha devagar pelo ar até chegar perto da minha cabeça, na época ele tinha mais ou menos um metro e meio de comprimento, e à medida que foi conquistando espaço na minha casa,foi ficando cada vez maior, atingia, nos momentos em que em mim eu era só desastre, uns 4 metros de comprimento, da ponta da cabeça até  o fim da cauda. No início ele apenas ficava parado ao lado da cama, sempre quando eu estava quase caindo no sono, acreditando que a visão daquilo era obra de um sonho entre os muitos sonhos que se repetiam semanalmente. Com o tempo o bicho foi adotando uma postura mais agresssiva, algumas vezes achava até que ele havia rugido ou rosnado. Nessas ocasiões, mesmo duvidando dos meus sentidos, me tremi de cima a baixo e corri pra o que na época chamava de "longe", um lugar que só existe quando estou me movendo rápido entre dois outros lugares, é antes um estado, um estou-fugindo daqui que só existe quando eu corro de um lugar pra outro, geralmente em espaços abertos e sob o efeito de algum dos meus venenos.
  Dia desses vi de novo o bicho, enorme, gordo de sugar de mim o que me anuvia, flutuando no ar feito um peixe, no estacionamento de um prédio onde eu me encontrava, no subsolo. O bicho nadou seguindo o sentido da pista e ficou ao lado de uma enorme caçamba de lixo, olhando pra mim, sempre cuidando para que eu sempre me sentisse microscópico ou gigantesco, nunca algo entre esses dois. O bicho, desde que começou a me guardar, nunca me disse uma palavra, não sei se ele sequer entende minha língua, mas sinto às vezes que ele tenta me mandar uma mensagem de alguma forma que eu ainda desconheço, mas que recebo e decifro sem perceber, pois às vezes, ao ficar perto do bicho, sinto de repente uma coisa estranha, meio tontura meio espasmo, algo santo que me faz perder o prumo (já cheguei a cair desnorteado depois de uma dessas) e pedir socorro. Talvez ele queira me dizer que eu escalei uma escada proibida que me levou a terras onde sem ele eu nunca teria tido acesso. Talvez ele queira, por cuidado ou mesmo amor, me pedir que pare com os excessos de todos os tipos para que assim eu tenha mais paz, mas paz nunca me interessou, tenho nojo da paz, e deus queira que ele também.
  O bicho, uma noite, e por uma razão que eu desconheço, começou a emitir uma luz fraca da sua pele, azul. Iluminou todo o quarto, talvez para que eu acordasse e me assombrasse de novo com alguma miudeza, pois o momento que acordo torna meus pensamentos mais  delicados e sensíveis. "Talvez assim", ele deve ter pensado, "ele tome consciência da magnitude do erro que está cometendo", erro esse que eu sei que é muito nítido e óbvio, mas que não consigo sequer delinear. Tenho certeza que em algum ponto do caminho tropecei, talvez sorridente, e entortei o pé para sempre, o que fez com que eu me desviasse da rota inicial, indo parar não-sei-aonde. Talvez por isso o bicho me olhe desse jeito estranho, com os olhos muito arregalados, sem se mexer. Aterrorizado, quem sabe, com o que ele vê de mim que é muito meu. Talvez ele tenha sido amaldiçoado há milhares de anos, por ter beijado uma boca proibida, a ter sua vida jogada contra a vida de criaturas que possuem em si A Grande Dúvida do Mundo, criaturas sem arestas, horrendas, e por querer ser o bicho mais sábio da Terra, tenta trazer uma luz a essas criaturas, sem saber que a maioria delas, assim como eu, possui um véu sobre os olhos, um tecido que envolve a cabeça com tanta força que causa tonturas, e que nos impede de perceber as coisas com nitidez. O bicho talvez não tenha outra opção senão tentar jogar uma corda no poço onde caí e me afogo, talvez tenha feito isso com muitos. Teria ele conseguido fazer alguém parar de sufocar? A gente busca a felicidade até nos poços mais profundos, nodosos e escuros. Não sei mais de nada, meu discurso interno sempre foi puro caos, por isso falo do bicho, por isso falo dos meus amores, por isso falo das minhas más escolhas, do desespero que as pessoas me causam. Talvez seja essa a derradeira tentativa de olhar para mim com pureza, através de bichos, humanos ou não, tento achar uma partícula de mim. Grande erro, eu sei, me procurar no que está fora de mim. Mas entendam: O meu de-dentro é um oceano escuro e profundo cujas águas circulam sem depender de mim, o meu de-dentro foge do meu conhecimento e  controle, por falta de opção mais eficaz, sigo procurando partes de mim que, apesar de serem minhas, estão fora de mim. Seria eu oco? Oco ou oportunista. Não quero agregar a mim experiências vividas por outras pessoas, mas preciso, sempre em desespero, saber se estou  ultrapassando os últimos limites de não-sei-aonde, além, aquém, ali e possivelmente nunca aqui, sobre o bicho que sempre cavalguei,
O bicho que é fome,
É planta,
É rei.

24 de março de 2015

 Permanência não existe, eu sou a constante mudança do universo, a eterna transfomação em absolutamente nada especial do mundo. Mesmo o amor se transforma, mesmo a pedra se vaporiza e mesmo o mais encrustrado dos hábitos de pensamento um dia se esvai. Não existe agora, não existe o aqui, somos cada um uma onda e um beijo, um bicho que se move por simplesmente se mover.    Permanência é uma doença, é um pecado, que, por deus, enquanto seja esse corpo, que eu não me limite a ser uma unidade. Se ninguém fosse o que é, não me acanharia por um olhar, falaria olhando nos olhos, no de dentro, olharia no fundo, no âmago, assim como me olham, assim como arrancam a minha pele e destrincham minhas víceras por simplesmente se permitirem ser alguém. Nunca fui alguém. Alguma coisa, talvez, mas alguém, nunca. Eu sou a possibilidade de ser todas as coisas, a dúvida, a incerteza, a impermanencia, e que eu seja sempre todos os eu que já fui e muitos mais. Dos venenos, que me venham os mais fortes, das delícias, as mais tenras. Plâncton, do grego plagktós, organismos unicelulares que não possuem poder de locomoção e se movem livremente na coluna de água. O alimento que me virá será o que eu mereço, tocará em mim quem o mundo decidir, sou só um floco de neve que cai, derrete e fantasticamente cria o movimento mais belo do universo, o que simplesmente me foi ordenado. Não temam serem escravos de vossos pensamentos, pois são eles as coisas mais puras que têm. Sejamos todos o resultado de tudo o que vivemos, completamente, vulneravelmente. Eu sou o fruto de milhões de pessoas que se amaram, sou o sobrevivente de milhões de catástrofes, de milhões de impossibilades. meus pais um diaforam apaixonados, e assim meus avós, meus bisavós e os pais deles, sou no final o fruto da total impossibilidade, sou o desacerto que foi acertado, o torto encaixado, e assim são todos e tudo que existe. Quattrilhões de milagres em nossos passados, quatrilhões em nossos futuros, quatrilhões dentro de nós, nos ossos, nas pontas dos dedos e derretendo em cima da língua, que possamos de tudo, inclusive dos venenos, beber da turbidez, nadar na turbidez como se eu e você e todos os outros mergulhassem do topo do céu azul até o fundo, a rudez da terra.

11 de novembro de 2014

Antes de tudo houve um vaso de cristal quebrando no chão o silêncio do meio da noite, não sei que dia, que noite. Eu era criança e não tinha medo, mas esse maldito objeto que quebrei... Eu não sabia o que era, não fui ensinado, não me disseram nada sobre o vaso, por isso, por paixão, sem tocá-lo, o quebrei. O vaso estava fora e dentro, longe do meu corpo e emaranhado nas minhas tripas. Ninguém captou o fato de uma coisa, dentro e fora, ambas raríssimas, quebrarem sem dor.
Depois da quebra, houve um soluço. Eu era mais velho e não chorava. Era noite, sempre noite. E como o vaso, a noite era fora e dentro. Eu não conhecia o choro. Num momento eu estava só quebrado, e no momento seguinte, quebrado e molhado de lágrimas. Não foi de todo um choro, ou se foi, foi apenas um início, um espasmo, então deixei escapar um grito de leve. Dentro do meu peito alguma coisa apertou, e então, com alguma coisa muito linda espremida no peito, e por medo e ingenuidade, segui, com o dentro estraçalhado e inchado por essa coisa...

[incompleto]