31 de julho de 2010

  A noite estava fresca. Fresca e leve e honesta estava a noite como a maioria das noites sempre são, mas ele não é assim como a noite ou todas as noites são. Ele é um homem, um homem que corre, respira o tempo todo, senta, fode quase nunca e chora às vezes, como a maioria dos homens. Senta. Sentou na cama úmida de bermudas gastas e só. Só de bermudas e só ele. Abrira a janela do quarto há horas para ficar bem frio ali dentro, assim como era lá fora, queria que o quarto inesperadamente, sem susto mas com surpresa, se transmutasse num pedaço da noite. Se fosse mais ousado e honesto descobriria que queria que não só o quarto, mas que ele mesmo fosse um pedaço puro de noite pura. Chuvisca fora da casa e dentro do quarto também, a cama úmida de chuvisco e suor, a casa molhada de chuva e o homem de suor, a noite dentro da casa e fora da casa também, dentro do homem sem nada de noite, sem nada de nada, só pensamentos vagos mantidos na vaguidão pela concentração na chuva e o choro seco, a cama molhada de suor e chuva, não de lágrimas, será? Não seria o suor e o berro-grito-careta-indecifrável-tremedeira-urro-de-bicho-encurralado um choro torto? O raciocínio parou por aí mesmo, era um homem de perguntas não respondidas "porque assim que é bom.". 

  Roupas velhas podem ser surpreendentes, a mão velha foi no bolso velho e direto no papel velho, a cara amassada de várias horas de sono mirou o papel amassado que agora estava desamassando nos dedos velhos: "Há um lugar na minha mente e no mundo aonde eu vou às vezes, lá é frio e incrível, lá chove fino e venta muito e muito forte e é onde as coisas se corrompem.". Escrita estranha, letras difíceis, escreveu isso na infância nem-sei-quando, ah sim, foi na semana passada, e até hoje, depois de tanto tempo, pensa assim, trocando talvez a chuva fina por uma bem mais forte, com raios, inundações e tudo mais...teria envelhecido tão rápido? Estava tudo ali na mão e no mundo: a chuva, o vento, a nulidade e a corrupção das coisas. Lembrou. O papelzinho com a frasezinha esquisita era um lembrete. As coisas com esse homem são muito velozes, não consegue se manter em nada por muito tempo, e esse lembrete escrito era a tentativa de alcançar essa resignação por mais tempo, "porque resignação é igual felicidade.". O lembrete não funcionou, só meteu a mão no bolso depois de uma semana, quando voltou a se resignar, mais um lembrete ineficiente no meio de tantos. "Se há fogo, serei álcool." um dia ouviu de si mesmo para tentar aceitar as rápidas mudanças em sua vida, auto-sabotagem para aceitar a sua natureza volátil. Tudo na vida foi sempre fogo, tudo que diz respeito a ele é sempre coberto de pólvora, e com o toque de qualquer faísca minúscula as coisas queimam, fazem fumaça, tremem, incham, desabam, derramam cinzas, explodem, derretem e o cenário de repente é outro e vai se cobrindo de pólvora de novo até o próximo show. Desde sempre ele se viu assim, se queimando e fugindo de incêndios, avisando a todos para não se aproximar muito, não provocarem faíscas. Muita gente bem que tentou se aproximar devagar, sem movimentos bruscos, mas no fim sempre havia atrito e se faziam grandes explosões, "você me queimou!". Mas ele se refresca nessa noite parada, exceto pela chuva. Nada vai arder sem controle ou direção, só o coração. O coração e só. Úmido com o coração quase apagando e só.