13 de julho de 2011

SSS

Sim, sou, somos todos e foram todos o resultado de uma sucessão de acidentes, somos o fruto de milhões de tropeços e nada muda até acidentalmente morrermos e sem querer virarmos chuva, terra, formigas e árvores. Não há o que se fazer quanto a isso, quanto a nada. Apavoradamente, com medo de ser descuidado olho pra baixo, metros para baixo, e sinto a imensa coluna de ar que há entre mim e o chão, acidentalmente duro. "Sou desesperado" penso, e digo que sou engraçado. Sou os dois ao mesmo, e sou também magro, melancólico, irresponsável, medroso e corajoso, tudo sem querer. Foi sem querer que não li aquele livro, foi um acidente eu não gostar de música, não comer direito e não ter feito aulas de piano, não foi por culpa minha que aquela menina lindíssima me odiou, sou desesperado. Me algemei, confesso,  a tal ponto que se pudesse viveria em uma concha, sedado, encolhido quentinho num sono sem sonhos. Mas, e não é por culpa de ninguém, nunca estarei quentinho, sedado flutuando num sono sem sonhos. Assustador a ponto de eu não querer fazer aulas de piano, e nem de coisa nenhuma. Todo dia é último de uma sequência de dias que vivi por acidente, dias quentes e ácidos, assustadores. Arrastei esses dias para a cozinha e os explodi com dinamites, me esfreguei nesses dias e feito um velho moribundo, me enforquei no chuveiro sem companhia, ou com a companhia que apareceu. Esqueci. Ando muito esquecido, tudo já passou e deixou só uma poeira estranha suspensa que faz minha pele coçar. A coluna de ar à minha frente, uma língua imensa descendo da minha boca até o chão, atravesso ou não? Caso o faça, não será culpa minha mesmo.

Doença

Muito é discutido sobre a Doença, a Doença já foi o centro de milhares de seminários, reuniões, debates, teorias e pesquisas científicas, mas até o dado momento, nada de relevante foi descoberto ou inventado e a Doença é tristemente considerada um fenômeno paranormal ou uma atividade natural estranha ou uma atividade natural ou um fenômeno natural ou sabe-se-lá-o-que.

A Doença foi citada por Shakespeare, Bohr, Camus, no Alcorão, na Origem das Espécies, em Crime e Castigo, Em Busca do Tempo Perdido e Tom jones, a Doença já atacou presidentes, esportistas, aidéticos, paranóides e todo o tipo de pessoa. Não existe vacina contra a Doença, antibióticos não resolvem e cirurgias não têm efeito algum, exceto por algumas cirurgias plásticas no nariz, ou aquelas para remoção de rugas e, eventualmente, verrugas.

A Doença ataca de surpresa com todo seu potencial destrutivo, como ataques do coração e raios, se prestarmos atenção às pessoas que passeiam por uma calçada, por exemplo, podemos, se tivermos sorte, observar a Doença entrando em ação. Porém, há quem diga que a doença toma conta da vítima aos poucos, por semanas, meses e anos (há um relato de uma senhora que conviveu com a Doença por três décadas!), até o colapso.

A Doença não ataca outras espécies, há quem diga que a Doença é algum tipo de falha genética. Às vezes, se pararmos o que estivermos fazendo e respirarmos fundo, é possível sentir os esporos da Doença passando por nossas vias nasais. Outro método eficaz de atestar a existência da Doença é observar o rosto de uma pessoa (preferencialmente acima de 25 anos) com atenção. Observe o contorno do rosto, as marcas, cicatrizes, vincos, a textura e a cor e poderá dizer acertadamente se aquele corpo possui a Doença ou não.

Os corpos das crianças possuem mais resistência contra a Doença, nenhum bebê jamais foi acometido pela doença. A Doença se manifesta também durante o sono, e pode causar neuroses, cistos, queda de cabelo e gravidez. A Doença é curável, curabilíssima, e pode ou não ser altamente contagiosa. A Doença provavelmente nunca vai ter um nome científico, mas todos acreditam que ela exista, o que leva a crer que estamos lidando com algum tipo de entidade espiritual, extra-planetária ou com algum tipo de flash-mob.

A Doença é uma maravilha, deixa os nervos expostos em algumas pessoas, e até uma leve brisa que toque em suas faces é sentida como se tivessem enfiado a cara numa mistura de duas partes de ácido sulfúrico para uma de xilocaína. A Doença nos faz ter visões reveladoras, feito ayahuasca, ou nos deixa em transe. A Doença está no jornal  em revistas em quadrinhos.