30 de junho de 2010

Estreitamento

Ele adorava o lusco-fusco. O céu escuro deixava as coisas muito fortes, porque era inevitável olhar um pouquinho mais pra dentro. O céu claro deixava tudo quente, isso desviava a concentração de qualquer criatura. O céu escuro faz todo mundo se perder um pouco, se distrair um pouco. Era no lusco-fusco que as coisas fluiam, a energia na frequência perfeita para se fazer coisas importantes. Todos os dias, antes de amanhecer, o homem acordava, fazia uma xícara de café forte sem açúcar e vestia uma calça de moletom cinza que começava a grudar no suor das coxas brancas e gordas assim que surgia o sol, ele colocava essa calça porque escondia a brancura e grossura das pernas. Pernas bonitas, aliás. Pena que o homem que corre com roupas ridíulas nunca as mostrou pra ninguém, por isso nunca teve uma opinião positiva. Não fazia diferença, uma opinião positiva não é lá uma coisa que muda nosso cotidiano. Então ele calçava os tênis dois números maior que o pé dele (porque isso fazia suas pernas parecerem menos grossas), uma camiseta e ia caminhar. O primeiro quilômetro era feito sem problemas, no fim do segundo ele suava feito um porco, as panturrilhas doíam, a cabeça latejava e ele andava dando pequenos saltos, como se estivesse prestes a cair para a frente. Então se arrastava de volta pra casa. Mas nada disso importava, afinal, o céu era sempre maravilhoso e a temperatura, ótima.

Fora o fato desse sofrimento autoinflingido sem necessidade, ele era normal. Normalmente obeso, número normal de amigos (nenhum), gostava de novelas, coxas de frango, coxas de mulheres e gostava sem motivo do som que fazem as rodas dos carros no asfalto molhado, acreditava vagamente ser por conta das chuvas escassas na cidade onde morava.

E vai-se essa uma hora e meia de felicidade, depois, trabalho. Ele trabalhava
numa fábrica de canetas, e era responsável por fazer aqueles furinhos nas canetas, "Eu quero um aumento" disse um dia ao chefe, "É muita pressão! Meu trabalho não reconhecido por ninguém! Ninguém sabe pra que servem esses furos, preciso de um incentivo.", e o seu chefe afirmou que todos sabiam que cada furo em cada caneta era uma forma de economizar o dinheiro do plástico, "Em 396 anos, nós poderemos comprar uma nova cafeteira! Não é genial?". Então o gordo que faz os furos inúteis nas canetas se entristeceu e explicou que os furos servem para o ar entrar no tubo de tinta das canetas, o ar ocupa o espaço da tinta que saiu, evitando que a caneta pare de funcionar e crie um vácuo, "Dizem que se várias pessoas tamparem o furo e começarem a escrever sem parar, criam-se pequenos buracos negros que podem se transformar em enormes buracos negros em questão de semanas. Eu salvo o mundo do apocalipse a cada vez que abaixo aquela pequena agulha e recebo menos que o cara que faz manutenção na máquina de capuccino!". Convincente. Ganhou uma máquina de capuccino perto do banco onde ele trabalha, em 58 anos conseguiria uma contaminação por mercúrio.

Todo esse trabalho cansava, apodrecia todo o potencial daquele homem supernutrido na beira da meia-idade, ele chorava às vezes no banheiro olhando para canetas. Ele queria ter poder para causar um apocalipse, "ou pelo menos uma catastrofezinha humilde.". Todo esse sofrimento desnecessário sumia quando ele saía do trabalho às cinco e meia da tarde, ele fingia que seus pulsos não doíam enquanto dirigia, balançando a mão direita sobre o volante e contraindo o abdômen a cada pontada no pulso, como um veado com cãibra. A felicidade de lusco-fusco já começava aí, antes mesmo do lusco-fusco.

Barulho de motor, o som das rodas dos carros sobre o asfalto seco, crestado. O cheiro sufocante de fumaça, o cansaço quase digestivo das pessoas nos carros semi-mortos no congestionamento quilométrico, milhomético? Às sextas-feiras eles beiravam o bilhométrico. Era tudo muito irritante e patético, era tudo muito irritante e patético todos os dias úteis às seis da tarde. E ele gordo e quente, suando na roupa puída e olhando calmo para cima. Era tudo muito lindo, o céu alaranjado-vermelho-roxo-preto era tudo o que ele tinha, tudo que sentia. Conseguiu se convencer que seu pulso não doía e então parou de doer. Os outros motoristas pararam de olhar estranho para o veado com cãibra no fusca. Imaginou que devia ser Deus, é isso, "Deus estava voltando do trabalho e passou por aqui, viu meu pulso e tirou a dor. Deus se concentrou em mim!", ele acreditava que para Deus a Terra era um formigueiro, e que por isso ele não podia cuidar de todo mundo. "Meu tamanho deve ter chamado a atenção d'Ele", pensou orgulhoso. Barulho de buzina. Então anoiteceu e ele olhou um pouquinho mais pra dentro, como todo mundo faz com essa iluminação natural alternativa, depois um pouco mais, pelo pulso que ele fingia que havia parado de doer. Depois muito mais.