29 de junho de 2010

Se eu Fosse Eu

Ele não sabia se todos eram como ele. Às vezes de repente, assim no meio da noite ou enquanto caminhava na rua ou barbeava seu rosto ossudo e anguloso, vinha um lampejo de esperança, um desconcerto nas idéias: Preciso fazer algo urgente para me tornar uma pessoa melhor. Nunca acreditou em duendes, anjos da guarda, mágica ou paranormalidade, para ele essas coisas eram outros desconcertos, desequilíbrios que só surgiam quando o universo perdia o foco ou o prumo, e logo desapareciam. A questão é que ele nunca soube de onde vinham esses lampejos. Não acreditava que algo tão lindo pudesse estar saindo com certa frequência de sua cabeça (ou coração, ou alma, ou insatisfação, tanto faz), mas de fato saía.

"Vou escrever um livro", decidiu definitivo uma vez. Sete dias depois 4 folhas de papel mal escritas foram jogadas no lixo junto com uma dúzia de lágrimas. Outra vez decidiu viajar. "Viajar é uma coisa boa, todos pensam em viajar. Amanhecer cada dia em um lugar novo, conhecer outras pessoas, outras culturas, dá pra ser alguém novo todos os dias. Além disso eu fui feito pra isso, tenho corpo e alma de aventureiro. É isso, vou viver na estrada.". Dez dias de estradas sem graça, pessoas mal-humoradas, paisagens feias, mosquitos, comida ruim, banho mal tomado e bolhas nos pés, e logo a mochila enorme estava encostada num canto da garagem, molhada com outra dúzia de lágrimas. Todos os dias fazia alguma coisa imaginando estar ajudando a si mesmo a se tornar uma pessoa fantástica. Às vezes passava trinta minutos escovando os dentes, até as gengivas começarem a sangrar, "a pessoa que eu quero ser tem dentes limpíssimos", justificava. Um dia estava preso no trânsito pensando se mudaria ou não o trecho para o trabalho. "Se eu fosse eu, enfrentaria com coragem esse engarrafamento infernal ou faria uma manobra audaciosa, mudando o trecho?". Entrou em colapso nessa dúvida, deixou o carro morrer, ficou tonto e voltou a si depois de 10 buzinadas raivosas. Trilha sonora para mais alguns mililitros de autopiedade. Voltou pra casa e decidiu que nunca mais seria alguém melhor.

Seu corpo mirrado de aventureiro de 52 quilos já gritava os 42 anos de idade. Rugas, cansaço, desprazer, isso tudo o assustava. Nunca escreveu um livro, não fez uma maravilhosa viagem, nunca fez um ménage a trois com 2 mulatas, não quebrou o nariz do chefe e nunca fez nada que o fizesse sentir um homem fantástico. Não que não tenha tentado, e tentou até morrer, chorou pelo menos 3 vezes por semana repetindo que nunca mais tentaria ser mais especial, mas logo voltava a tentar: "O homem que eu quero ser não fumaria um cigarro agora", "Se eu fosse eu, eu colocaria mostarda ao invés de maionese, pois o sabor da mostarda deve refletir perfeitamente minha honestidade.". O homem que ele queria ser o machucou durante toda vida e nunca deu sinal de estar chegando, ah, se ele tivesse sido ele mesmo.