29 de junho de 2010

Formigas

Estava caminhando no mato. Olhou pra baixo, e a impressão de que estava descalço no mato foi confirmada, num susto. Não podia estar caminhando num mato, a última lembrança que tem foi a de estar deitado na cama, olhando pro teto e imaginando se haveria alguma forma de dormir pra sempre. Agora estava caminhando rápido num campo de mato baixo, que se estendia por meio quilômetro para todos os lados e então -será possível?- a cidade. Sim, era mesmo a sua cidade, o seu bairro, reconhecia todos os prédios, o prédio branco com colunas verdes crestadas descascando, onde ele observava às vezes uma mulher tirar a roupa e examinar o próprio corpo com certo espanto, sempre ao mesmo horário. Quer horas seriam agora? Ele calculou que foi se deitar à uma da manhã, talvez tivesse ficado deitado por trinta minutos, um pouco mais?

É isso! pensou nervoso, "devo ter pegado no sono". Então parou e se sentou, estava assustado, não parecia em nada com um sonho. Examinou o corpo, tocou a barriga com os dedos e se golpeou no estômago com um soco, o mais forte que pôde. Perdeu o fôlego e caiu para o lado, desmaiado.

Acordou. Estava deitado no mato. Lembrou o que houve e se apavorou, os olhos insanos correndo todo espaço vazio à sua volta. "Meu Deus do céu!" chorou, "Isso não é um sonho, ninguém sonha que esteve desmaiado!". Duvidou do que acabara de dizer... a Deus? Ao mato baixo? A ele mesmo? Não importa, ele acabou de descobrir que esse campo de mato baixo fica no lugar exato de seu prédio. Como se no lugar de sua asa houvesse esse campo, estendido centenas de metros para todos os lado. Se assustou ainda mais, sempre foi um homem sólido, quase a solidez que todo homem deve ter, porém mais honesto. Tinha medo de coisas novas, nunca teve coragem de repintar as paredes infiltradas do apartamento, seria assombroso. Seu estômago roncou, puxando ele de volta ao gramado. Não era hora de pensar em infiltrações, ele ia pedir ajuda.

Começou a caminhar. Meu Deus! (desde pequeno aprendeu com o avô a exclamar "meu deus" por qualquer coisa, sua avó certa vez disse que para falar isso tem um preço, e que o dele seria enorme) Meu deus! caminhou mais rápido, seguindo em direção ao prédio com colunas verdes e uma mulher bonita dormindo no terceiro andar, terceira janela da esquerda para a direita, que ele gostava de observar. Estava tudo planejado: Ele chegaria até a rua e agiria como um estranho, "Havia um prédio aqui, não havia? Faz tempo que não venho a esse bairro...", e dependo da resposta que recebesse, calcularia o que fazer. "Que idéia ridícula, como eu sou covarde, é claro que o prédio sumiu, é claro que há um espaço muito maior que o que havia antes!" Gritou. Sua caminhada era agora quase uma corrida, caminhava como as pessoas apressadas que ele via caminhar loucas pela calçada, procurando alguma coisa. Vistas de longe parecem formigas enfileiradas buscando alimento. "Só que sem o alimento" se assustou com a própria voz, e logo depois do susto lembrou que era um covarde que se assustava até com a própria voz. Talvez ele seja uma formiga buscando coragem, caminhando pela calçada. Não, não era. Essa cidade...todas as cidades...são infestados dessas pessoas-formiga que caminham apressadas sem se darem conta que não carregam nada, tocando as anteninhas umas nas outras quando se esbarram. E ele era pior, era uma formiga covarde.

Perdeu o fôlegoe se sentou no chão, as duas mãos espalmadas no mato baixo, "tenho que parar de fumar". Uma formiga subiu em sua mão. Seria uma formiga corajosa ou uma covarde? Olhou para o prédio verde, parecia estar à mesma distância de antes de começar a caminhar. Ele caminhou muito, o prédio não se aproximava. "Eu nunca vou chegar lá!", quase soltou um alto e definitivo "Meus Deus!", mas lembrou de sua avó, e sua conta com deus já devia estar muito alta, então pensou rápido e disse "Merda!", começou a chorar e a esmurrar com força o chão com moitas baixas: "Merda! Merda! Merda Merda Merda!" Caiu no chão e chorou mais ainda. Quando parou de chorar decidiu chorar ainda mais, contraiu o rosto numa careta de dor e nojo e pena e ódio, e chorou mais um pouco, sem lágrimas.

Se amaldiçoou por ter chorado, por ter esmurrado o chão e os nós de sues dedos doerem, e se amaldiçoou por ter desejado dormir pra sempre minutos antes de acordar caminhando nessa prisão aberta. Formiga covarde e idiota andando sozinha.

"Eu não quero ser uma formiga!" gritou, "Aaaaah!". Se levantou olhando fixo pro prédio, primeiro andar, terceiro apartamento da esquerda para a direita. Começou a andar em sua direção. Andou mais rápido. Mais rápido ainda. Começou a correr. Correru o mais rápido que pôde, correu numa linha reta, suas pernas curtas não eram boas para orrida, constatou. Agora eu me vejo, sou a mulher no espelho sendo observada, e eu vou mostrar que não sou a porra de um covarde! O mato era mais alto agora, até a cintura, bom sinal, pelo menos estava saindo do lugar. O vento frio batia no corpo pela direita, vento seco e frio de julho golpeando com força o rosto vermelho. Decidiu correr mais rápido, não estava cansado, se inclinou mais para a frente, isso o faria instintivamente mover as pernas mais rápido para evitar uma queda. Ele não era um covarde, estava correndo rápido em direção ao prédio, um covarde não faria isso. Correu mais rápido, as pernas formigavam do joelho até os pés, o coração covarde batia desesperado, ele sorriu insano: "você não está acostumado com a coragem, amiguinho, aguente.". O mato agora batendo nos olhos, ele feroz saltando veloz entre os ramos, os olhos de bicho na janela de alumínio, só pararia quando não aguentasse mais. Não teve coragem de calcular se o prédio se aproximava ou não, mas não se culpou por isso, estava no delírio mais corajoso que tivera. Poderia correr pra sempre, poderia correr mesmo sem ar, mesmo sem pés, só precisava de uma janela de alumínio no primeiro andar, terceiro apartamento da esquerda para a direita, mulher se olhando estranha. Ele se olhava estranho agora, era alheio, formiga sozinha subindo no sapato. Seu joelho falhou, seu corpo capotou, deu duas cambalhotas e caiu, espatifado no mato alto. Meu Deus.