23 de abril de 2015

  Fazia tempo que não dormia e por isso via o bicho com maior frequência, flutuando entre as pessoas, como se nadasse, todo marrom acinzentado, os olhões abertos sem piscar e a boca querendo botar pra fora que o bicho não era mais gente, era só bicho e pronto. E por cordialidade uma moça me perguntou: "como vai?", respondi "me amedrontando eu vou", e ela arregalou os olhos por um instante feito o bicho que apesar de não estar presente no momento, estava sempre presente. Bastava que meus nervos se alterassem, mesmo que levemente, para que o bicho aparecesse flutuando entre as coisas, talvez para me lembrar que depois de muitos anos nesse mundo, percebi que passei a maior parte da minha vida do avesso, com os nervos e as veias vermelhas à mostra, os órgãos pendurados, os olhos vendo só o de-dentro. A gente procura a felicidade nos buracos mais escabrosos. Eu não sabia disso até perceber que passei a maior parte da vida do avesso, procurando a felicidade no extremo oposto das coisas. O bicho não dizia nada, mas se dissesse, imagino que seria algo como "és inteiro? pois agora morre" ou coisa assim, como as coisas que eu costumava acreditar quando estava ainda impregnado de pureza, mas que acreditava sem saber os nomes e sem ter ainda a  atitude egoísta de tentar me enxergar, com pressa, em cada coisa que tocava o meu dia. Então quando comecei, por puro conforto de espírito, a me ver não mais como o bicho que me seguia e que de alguma forma obviamente era eu, mas como, ainda um pouco incerto, as pessoas lindíssimas que haviam, por sorte ou não, decidido por um instante congelado ficar ao meu lado, a dubiedade tomou conta, inundou mais uma vez o que antes havia claramente escolhido um dos muitos lados. Foi quando o bicho passou a ficar  mais perto. Primeiro aparecia para mim somente quando eu estava prestes a dormir. Sacudia o seu corpo escamoso e vinha devagar pelo ar até chegar perto da minha cabeça, na época ele tinha mais ou menos um metro e meio de comprimento, e à medida que foi conquistando espaço na minha casa,foi ficando cada vez maior, atingia, nos momentos em que em mim eu era só desastre, uns 4 metros de comprimento, da ponta da cabeça até  o fim da cauda. No início ele apenas ficava parado ao lado da cama, sempre quando eu estava quase caindo no sono, acreditando que a visão daquilo era obra de um sonho entre os muitos sonhos que se repetiam semanalmente. Com o tempo o bicho foi adotando uma postura mais agresssiva, algumas vezes achava até que ele havia rugido ou rosnado. Nessas ocasiões, mesmo duvidando dos meus sentidos, me tremi de cima a baixo e corri pra o que na época chamava de "longe", um lugar que só existe quando estou me movendo rápido entre dois outros lugares, é antes um estado, um estou-fugindo daqui que só existe quando eu corro de um lugar pra outro, geralmente em espaços abertos e sob o efeito de algum dos meus venenos.
  Dia desses vi de novo o bicho, enorme, gordo de sugar de mim o que me anuvia, flutuando no ar feito um peixe, no estacionamento de um prédio onde eu me encontrava, no subsolo. O bicho nadou seguindo o sentido da pista e ficou ao lado de uma enorme caçamba de lixo, olhando pra mim, sempre cuidando para que eu sempre me sentisse microscópico ou gigantesco, nunca algo entre esses dois. O bicho, desde que começou a me guardar, nunca me disse uma palavra, não sei se ele sequer entende minha língua, mas sinto às vezes que ele tenta me mandar uma mensagem de alguma forma que eu ainda desconheço, mas que recebo e decifro sem perceber, pois às vezes, ao ficar perto do bicho, sinto de repente uma coisa estranha, meio tontura meio espasmo, algo santo que me faz perder o prumo (já cheguei a cair desnorteado depois de uma dessas) e pedir socorro. Talvez ele queira me dizer que eu escalei uma escada proibida que me levou a terras onde sem ele eu nunca teria tido acesso. Talvez ele queira, por cuidado ou mesmo amor, me pedir que pare com os excessos de todos os tipos para que assim eu tenha mais paz, mas paz nunca me interessou, tenho nojo da paz, e deus queira que ele também.
  O bicho, uma noite, e por uma razão que eu desconheço, começou a emitir uma luz fraca da sua pele, azul. Iluminou todo o quarto, talvez para que eu acordasse e me assombrasse de novo com alguma miudeza, pois o momento que acordo torna meus pensamentos mais  delicados e sensíveis. "Talvez assim", ele deve ter pensado, "ele tome consciência da magnitude do erro que está cometendo", erro esse que eu sei que é muito nítido e óbvio, mas que não consigo sequer delinear. Tenho certeza que em algum ponto do caminho tropecei, talvez sorridente, e entortei o pé para sempre, o que fez com que eu me desviasse da rota inicial, indo parar não-sei-aonde. Talvez por isso o bicho me olhe desse jeito estranho, com os olhos muito arregalados, sem se mexer. Aterrorizado, quem sabe, com o que ele vê de mim que é muito meu. Talvez ele tenha sido amaldiçoado há milhares de anos, por ter beijado uma boca proibida, a ter sua vida jogada contra a vida de criaturas que possuem em si A Grande Dúvida do Mundo, criaturas sem arestas, horrendas, e por querer ser o bicho mais sábio da Terra, tenta trazer uma luz a essas criaturas, sem saber que a maioria delas, assim como eu, possui um véu sobre os olhos, um tecido que envolve a cabeça com tanta força que causa tonturas, e que nos impede de perceber as coisas com nitidez. O bicho talvez não tenha outra opção senão tentar jogar uma corda no poço onde caí e me afogo, talvez tenha feito isso com muitos. Teria ele conseguido fazer alguém parar de sufocar? A gente busca a felicidade até nos poços mais profundos, nodosos e escuros. Não sei mais de nada, meu discurso interno sempre foi puro caos, por isso falo do bicho, por isso falo dos meus amores, por isso falo das minhas más escolhas, do desespero que as pessoas me causam. Talvez seja essa a derradeira tentativa de olhar para mim com pureza, através de bichos, humanos ou não, tento achar uma partícula de mim. Grande erro, eu sei, me procurar no que está fora de mim. Mas entendam: O meu de-dentro é um oceano escuro e profundo cujas águas circulam sem depender de mim, o meu de-dentro foge do meu conhecimento e  controle, por falta de opção mais eficaz, sigo procurando partes de mim que, apesar de serem minhas, estão fora de mim. Seria eu oco? Oco ou oportunista. Não quero agregar a mim experiências vividas por outras pessoas, mas preciso, sempre em desespero, saber se estou  ultrapassando os últimos limites de não-sei-aonde, além, aquém, ali e possivelmente nunca aqui, sobre o bicho que sempre cavalguei,
O bicho que é fome,
É planta,
É rei.