31 de março de 2017

   E por tantas tardes escorri, frio, velho e taquicárdico, com venenos escorrendo de furos na pele, dando beijos secos e andando sempre muito rápido, que esqueci de manter os olhos abertos o tempo todo, não percebendo que o mundo estava cheio da poeira fina que caía sobre todas as coisas minhas. Poeira estranha, preta.. Velhice? Talvez nem poeira seja, talvez fossem as cinzas do grande incêndio que havia feito brasa do que no início, muito no início, foi madeira fresca molhada. Todo esse pó na garganta tornou rouco meu grito, minha fala arranhada e meus beijos duros. E por essas  tardes escorri como um prisioneiro se esmagando entre barras de ferro frio rumo a lugares outros, habitados por pessoas outras, com cheiros outros e um outro ar. Por essas tardes escorri ralo adentro, boca adentro, livro adentro, desejando escorrer por um cano enterrado infinitamente no solo, no solo cada vez mais duro, mais como meus beijos. um cano escuro, como uma veia, imperceptível e em si mesma desnecessária, até brotar na pele de uma criatura celestial que fosse só pele quente de carne quente de ossos quentes. Amolecer, escorrer, enterrar e brotar. Um imenso fruto de carne e ossos. Um fruto que se transformasse em algo que sem outra escolha apenas crescesse, esticando os dedos ao céu, ao único e indivisível céu. Essas tardes que se fizeram noites que se fizeram manhãs que se fizeram tardes me abriram um caminho reto até o outro lado do mundo, o outro lado de mim.