24 de outubro de 2014

Já beijei a lata sem tocá-la, já aspirei esporos venenosos de flores raríssimas, já corri sobre o musgo igual ao da minha pele e mesmo assim tudo me tonteia, cada movimento das coisas do mundo. Com a cabeça baixa e querendo que a abaixasse ainda mais, atravessando a terra, quilômetros pedra adentro até o calor e quietude uterinos  não merecidos. Pétalas vermelhas no chão, e pétalas vermelhas atravessando o ar até o chão, onde em meses se tornariam tão terra quanto a terra em que repousam caladas. Segura a cabeça, meu irmão, não a deixe no chão. Então, uma ideia: Vou chorar e pedaços dissolvidos de mim nas lágrimas atravessarão o ar, as raízes e então a terra. E assim faço até que venham me acudir, pois incomodo. Outro lugar, sem pétalas, sem terra e sem raízes, mas com pedaços de mim caindo no chão. Não só no chão, não só nesse momento, por toda a cidade minhas penas devem deslizar por entre as pessoas, penas brancas, de asas. Sem arestas, sem linhas que delimitem um lugar do outro, uma pessoa da outra, uma pena da outra. Minha cabeça nunca funcionou bem, eu penso, e por isso vou abraçar alguém até a morte, até o fim das penas. Mas elas são infinitas, pois são sagradas, e sagrado e infinito eu sou, mesmo que me desmanche. Porco e louco, mesmo que sob a bênção do grande velho, mesmo que eterno, mesmo que indissolúvel, inescrupuloso, impetuoso, colérico.
E pensar que eu andava e andava e andava até os pés doerem, em círculos, indo e voltando noite adentro e depois noite afora, choroso, extático como nunca voltaria a ser. Só me deixa mais macio e mais doce. Não quero doçura, nunca quis, tenho medo de doçura assim como tinha medo do que via nas paredes, o corpo inundado de venenos, a alma se engolindo. Sombras esguias, animais estranhos pelo chão, alguns com a face igual à minha. Tinha medo de dormir em camas porque no sono tranquilo poderia deixar escapar uma parte de mim que me era essencial e secreta, uma semente profunda que fosse rasgando a carte até brotar na pele, cair no chão e ser comida por um daqueles animais, mas eles não o fariam por mal, eles são bons, embora injustos e burros, embora sujos e impetuosos. Anos antes, que medo eu tinha de pôr coisas à minha volta! Já enchia os bolsos de papéis, desprendimento e pontas de lápis, mas nunca de sonhos. Foi disso que eles se alimentaram, nasceram e cresceram dessa falta, desse tremelicar febril, foi disso que os bichos cresceram e comeram as pontas de lápis e os papéis, as notas e tudo que com suor acumulei. Eram coisas muito minhas, embora sem importância. E num gesto de desespero coloquei nos bolsos coisas que não eram minhas, coisas de outros mundos, outras terras, outros corações (corações mais vermelhos que o meu), algo de que de imediato me arrependi. De coisas outras estava cheio, de mentiras, cheio, de ser meu próprio algoz, cheio. Então sem parto descambou em mim a maior das tempestades, tudo voava e molhava, as penas, inclusive. Eu me alimentava da água da tormenta, me nutria dos destroços que roubava do vento. Coisas minhas. Coisas outras. Lambi cada gota da tormenta, foi tudo pra dentro e se juntou com que já estava dentro. Desde então, quando abro a boca sai chuva e saem insetos, saem minhas penas e os bichos que me juraram fidelidade. De vez em quando um bicho roça sua cauda ou bico em meus pés, e uma pena se desprende de mim, mas não sem dor, pois essas penas só saem quando a cabeça está abaixada e submersa em angústia. Só assim o choro é. Só assim os bichos são. Só assim eu sou e a tempestade é. Só assim para meter as mãos nos bolsos e saber que o que toco é verdadeiramente meu.