24 de outubro de 2014

Às vezes eu percebo que desde sempre há uma planta morta queimando dentro do meu peito, mas sem dor, sem grito e sem um gesto desarranjado de carinho em minha direção, porém o calor, juntamente com as duas poças, uma de cada lado do meu corpo, que viajam quilômetros pelos primeiros vincos do rosto, atraem bichos raríssimos que lambem meus dedos e bebem das poças, e eu aspiro seu hálito sagrado. De repente eu sou bicho também, mas bicho ferido, morrendo, delicadíssimo, lindíssimo, puríssimo.
Quando essas flores que desabrocham entre meu pelos começaram a brotar? Elas pesam. Eu peso e os outros bichos, alguns vergonhosamente nem tão bichos assim, se arrastam pelo chão. Se arrastam. "Você se arrasta" foi que eu disse, trêmulo, naquela noite. Disse pra ele para que ele dissesse pra mim. E para tornar a afirmação mais verdadeira, lembrei que até aquela noite já me avisa arrastado milhas, léguas, con-ti-nen-tes . Mas eu era lindo. Até então eu era um bicho que visitava solene as pessoas que me amavam e lambia seus dedos e bebia de suas poças e me aquecia em cada fogo. Delicadíssimo. Lindíssimo. Puríssimo. E agora me extingui? minguei? Fugi para outras terras, atravessando rodovias sem ter meu corpo estraçalhado? A planta morta no meu peito ainda queima e lança no ar brasas vermelhas que iluminam do alto o que um dia fui eu antes de ser bicho.