30 de março de 2014

Água. Havia água dentro de mim, há água. O chão se repetia infinitamente e infinitamente eu me amedrontava. De repente toda a vida desabrochou na minha frente, todo o mistério que me aturdia por tanto tempo se desfez num véu de , isso mesmo, repulsa. A vida é uma grande boca suja aberta que te mastiga mas não te devora. As pessoas são limpas, limpíssimas, e dançam à minha volta sorrindo e cuspindo flores de todas as cores. O céu brilha. Na verdade sempre brilhou, mas só na hora me dei conta, e quero que chova, mas não chove e faz frio. O casaco grudado no corpo como uma sanguessuga, e o som das chaves como sinos nas pontas dos dedos, tintilando na pedra que um dia foi dele. Dele, e agora minha, sem meio-termo. E o som terrível dos carros como bichos rugindo na estrada, cascos de pernas de corpos de bichos que gritam e piscam os olhos reluzentes para todas as testemunhas, nada mais cruel que um bicho-máquina, um bicho não-bicho, como eu, no meio das flores cuspidas. E então, o deslumbre. O desenrolar, tanto dos passos quanto dos pensamentos, tudo estava claro e tudo estava enevoado, pois a verdade não existe, não existe uma grande mãe nos acolhendo no peito, nenhum grande fim. Estamos todos sós, cada um no seu delírio, nos tocando apenas com palavras, chorando por um contato real que quase chega, mas só quase. O maravilhoso é mesmo esse nojo, uma criança que cobre o sexo com as mãos, um gordo chorando, a grande besta do mundo num último grito que nunca cessa. E assim, sabia que vivi. Por um instante, vivi.