28 de novembro de 2010

TMES

Era desses homens magros, de mãos grandes e olhos sempre baixos, desses que se tornam vendedores de enciclopédias e artesãos, e morrem sem ninguém se dar conta, como um vizinho tímido se mudando no meio da noite.
Quando era criança, acreditava que a vida como via era apenas um jogo, uma espécie de teste pelo qual as pessoas passam antes de conhecerem a vida de verdade. O mundo era torto demais para ser aquilo ali, que ele via em seus primeiros anos na Terra. Acreditava que a toda criança, quando estivesse pronta para conhecer o mundo e sua beleza, seria revelado o mundo como ele é, e essa criança se sentiria como uma espécie de Jesus, e choraria e gargalharia quando visse o que estava à sua espera quando o mundo desabasse como uma cortina se abrindo. Ele acreditava na impermanência do mundo, que tudo um dia se corromperia como uma colônia de animais extintos que de repente recomeça a existir
Hoje, ou no que sobrou da sua ideia de tempo e da passagem dos dias, ainda trava a mandíbula ao lembrar-se do quanto fora burro. Há anos descobriu que o mundo é torto assim mesmo, e que a vida é um câncer que se sustenta. Um câncer em seu ambiente, e não propriamente nele. Ele sabe que viverá nesse ambiente hostil e louco até não aguentar mais, até enlouquecer ou sua cabeça implodir num estalo.

Será que sou só eu que sinto isso? Será que é só no meu peito que pesa toda a acidentalidade do mundo? Porque o mundo é isso mesmo, um acidente. Os planetas surgiram acidentalmente, e acidentalmente surgiram todos os animais, nossos pais foderam por acidente e sem querer nascemos. Colocou a mão magra na cara, pois estava num lugar movimentado e não queria chamar atenção. Ainda. Mas antes olhou para a calçada apinhada de pessoas e forçou a mente para pensar em tudo aquilo como um enorme resultado da aleatoriedade, como um grande organismo.

E essa dor que eu sinto? E esse senso de constante derrota, incapacidade e inadequação? Isso não parece ser um acidente, talvez eu tenha criado isso, devo ser um cientista cultivando bactérias mortais em meu corpo, sinto que estou envenenado, sufocado. Agora sim, chorou com força, forçou para que cada lágrima brotasse como petróleo rasgando a terra, por um momento, logo após pensar na metáfora das bactérias, perdeu a linha de raciocínio, pois o desespero não permite pensamentos mais complexos, então fez uma careta, tentando manter a intensidade do momento, e conseguiu recuperar o fôlego, engolindo em seco e corrigindo a postura. Se fosse para ficar feito um louco parado no meio da multidão apressada, que ao menos minha coluna esteja aprumada, pensou e sorriu. E chorou.
Tem vivido a vida como velho prestes a morrer, porque só um velho à beira da morte pode andar tão curvado e com os olhos tão mortos, e só um velho à beira da morte pode se diluir em tamanha resignação, auto-mutilação e desapego. Só me falta mais profundidade, o homem pensou, pois às vezes tenho a sensação de ser tão raso quanto um pires.
A essa altura, se manter em pé já era uma batalha contra a gravidade, e manter qualquer linha de pensamento era humanamente impossível. Tendo consciência disso, abriu as pernas e as arqueou, buscando mais firmeza nos pés. Flashes de acontecimentos aleatórios deram para desabrochar como flores raras, desviando a vista para o pensamento, e depois a retomando para a paisagem. Viu um dia, devia ter uns 9 ou 10 anos, quando sua melhor amiga lhe deu uma pulseira de miçangas, e ele, como bom repetidor, fez outra pulseira e deu para a amiga, numa comunhão. Lembra de ter dito "Você é uma pessoa com uma pulseira." e "e eu sou uma coisa com uma pulseira.". A amiga perguntou porque o homem, na época, um menino, não era também uma pessoa, e ele esbravejou que todo mundo sabia que ele era uma pessoa somente às vezes. Hoje eu não sou uma pessoa. Pensou e caiu no chão, de costas. Que hoje, toda essa vida que me foi sazonal, essa existência impermanente, tenham espaço para me inundar. Não conseguia mais manter os olhos abertos, via somente fantasmas se curvando sobre ele, assustados. "Está tudo bem!", queria dizer, mas a voz saiu como um ganido alto. "Eu não existo plenamente, e hoje estou num dia de inexistência ainda mais honesta, não se preocupem.". A única prova de que sua vida ainda não tinha se esvaído eram as lágrimas que teimavam em se espremer e escorrer dos olhos para o chão sujo. Os olhos vítreos, o pensamento raso, a boca seca aquele senso de monstruosidade conseguiram dar à luz a um último raciocínio: Toda essa poça escura que eu sou está grudada em mim, não tenho conserto e da vida nada mereci, e se desejo que toda essa náusea vá embora, que eu vá junto com ela.
Fechou os olhos e não viu ou ouviu mais nada, lágrimas ainda se esticavam entre as pálpebras, mas não era como petróleo rasgando terra, essas eram macias e quentes, eram como a saliva de algum animal milagroso, uma fênix ou unicórnio. Pensou em dizer "perdão, houve algum engano aqui, eu não sou uma pessoa deitada no chão, podem continuar caminhando, não se preocupem. Tenho certeza que não sou uma pessoa caída no chão, fiquem à vontade para seguir com seu caminho, obrigado.", mas estava muito cansado e mal conseguia se manter sólido, sentiu que a qualquer momento derreteria e escorreria entre as grades do chão para o subsolo. Estava cansado demais para mais uma última lágrima, queria dormir um pouco. Então morreu.